por Breno Lucano
O discurso de posse de Bolsonaro serve como elemento de análise de uma ideologia bem estrita. Ele se desdobra numa série de outros discursos à direita, cada vez mais estritos em alguns aspectos e, por outros, amplos.
Vale lembrar que ideologia não é um sistema de doutrina fechado, mas como uma meia verdade; ou ainda, como uma falsa consciência à respeito de algo. Está sempre sintonizado com certo público e funciona quando quem emite está no poder.
Vejamos o texto.
"Esse momento não tem preço. Servir a pátria como chefe do executivo só está sendo possível porque Deus preservou minha vida e vocês acreditaram em mim".
Não existem partidos. Não existem empresários dando dinheiro. Não há nenhuma força, além de Deus, que fala com ele diretamente e o salvou da facada, e o "vocês", o povo. A idéia da inexistência de intermediação é ideológico porque é meia verdade. Qualquer apelo à divindade é meia verdade. Apenas serve para quem crê em Deus e nunca pode ser levado em sentido amplo. Por outro lado, esse "vocês" também é meia verdade. A mídia, empresários, partidos, membros de várias comunidades que o apoiaram e a própria ingenuidade de muitos dialogam no sentido de favorecê-lo. Mas tudo isso é desconsiderado porque apenas Deus e "vocês" o legitimaram.
"Juntos temos como fazer o Brasil ocupar o lugar de destaque que ele merece no mundo e trazer paz e prosperidade para ao nosso povo".
Bolsonaro tem afinidade com o divino e o Brasil, fazendo ou não, é merecedor.
"É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil e me coloco diante de toda a nação neste dia como um dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, se libertar do gigantismo estatal e do politicamente correto."
Os inimigos estão demarcados. Primeiro, o socialismo; depois, inversão de valores, que é sempre vago; gigantismo estatal, o Estado está muito grande; e o politicamente correto.
Nunca tivemos bens de produção estatizada nos governos anteriores. Nunca houve socialismo no Brasil, mas apenas medidas voltadas para a social-democracia. Mas o socialismo também poderia vir, se já não estava implantado. Então nós não estamos nos afastados do que havia, mas do que poderia existir.
Inversão de valores nada diz porque não diz quais valores. Essa é uma questão em aberto.
Gigantismo estatal também é ideológico porque não se tem como mensurar isso. Se o funcionalismo público for cortado, as estatais continuarão funcionando? Se demitirmos funcionários do Banco do Brasil ele melhorará? Existem funcionários em demasia na Caixa Econômica? Se os funcionários forem demitidos, faremos isso sem desemprego? Nós já não vemos uma série de serviços de má qualidade, muitas vezes por falta de funcionários? O assunto se torna ideológico porque sempre há alguém que diga que viu funcionário público parado ou que foi mal atendido. Então, dirão que o funcionalismo público não trabalha. Em outras palavras, o particular se põe à frente do particular.
E o politicamente correto? Ele é muito frisado como algo da esquerda. Mas ele tem maior relação com o capitalismo e o avanço da sociedade de mercado. Não se pode falar mais nada porque tudo é machismo, homofobia. O famoso mimimi. Estamos errados por falar daquela maneira. Mas são questões específicas que são apontadas no geral. A ideologia faz isso, leva para o geral algo que é particular.
"As eleições deram voz a quem não era ouvido".
Mas para ele ser eleito teve que angariar votos de quem estava na oposição. Essas pessoas foram ouvidas quando votaram no PT e agora estão com ele. É o famoso "fora PT". Logo, essas pessoas foram todas ouvidas. Sempre foram ouvidas.
"Respeitando os princípios do Estado Democrático de Direito, guiados por nossa Constituição e com Deus no coração".
"Deus no coração" é algo perigoso. Ela é usada quando não se tem solução, sem esperança. Vá com Deus, fique com Deus, tudo estará resolvido. Bolsonaro tem Deus no coração, então tudo está bem. Ele nada pode fazer, mas Deus pode. Ele é o Bem e Bolsonaro por tê-Lo no coração é o escolhido por levá-Lo à população.
"Temos recursos minerais abundantes, terras férteis abençoadas por Deus e um povo maravilhoso."
Caímos no lugar-comum. Isso é o discurso da quarta série, onde a professa diz que no Brasil não tem furacão, tudo que se planta nasce, temos recursos minerais que nunca acabam. Esse discurso serve para que, aquele que o ouve, entender do que se fala.
"Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros."
Talvez o elemento mais ideológico do discurso. Ele visa denunciar a ideologia, inferindo que o discurso dele próprio não é ideológico, o dele é o livre de ideologia, é o pensamento puro. A ideologia aprecia denunciar ideologia. O discurso de Bolsonaro, por ser livre de ideologia, deve ser levado em consideração, porque o discurso ideológico é o do outro.
Todo discurso político causa divisão. Assim nasce a democracia. Eu aponto a tese A; outro aponta a tese B. O confronto entre A e B estabelece a democracia. Mas se eu digo que A deve ser banido, estabelecendo apenas B, então acabou a democracia: temos o fascismo.
"... ideologias que destroem nossos valores e tradições, nossas famílias, alicerce de nossa sociedade."
Mas não é qualquer ideologia que deve ser banida. Não é qualquer "A". É a que destrói as famílias. Se houver algum elemento na família que discorde, ele estará ideologizado. Ele será aquele que é capaz de destruir as famílias e o Estado. Em sua micro-estrutura, não existe Estado. Existem grupos de famílias que se auto-protegem, igual o próprio modelo de Bolsonaro, onde o pai e os três filhos se protegem.
"Vamos propor e implementar as propostas necessárias... É urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza polícias."
Claro, ele aqui se refere aos Direitos Humanos. Isso porque os Direitos Humanos protegem a todos os humanos, não apenas alguns. E ele quer proteger apenas alguns, os brasileiros de bem - que apnenas ele sabe quem são. Mas no discurso ele não pode dizer que é contra os Direitos Humanos, então ele fala "ideologia que defende bandidos".
Posteriormente ele fala das tais escolhas técnicas para seu mandato. Mas devemos considerar que as escolhas não foram técnicas, foram chamados apenas pessoas da direita. E ele mesmo diz, deve ser pessoas da direita. Assim, ele satisfaz seu próprio partido e as pessoas que o apoiaram, como o grupo evangélico, o grupo das armas e o grupo da mineração e ruralistas.
Termina o discurso pedindo que Deus o abençoe e que ele lhe dê sabedoria para guiar seu povo. Ele não vai mais administrar. Ele vai conduzir segundo Deus.
E continua.
"Nossa bandeira jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso nosso sangue para mantê-la verde e amarela".
Bolsonaro não vai administrar. Vai conduzir o povo com a sabedoria de Deus e defender o povo contra o mal, que é a bandeira vermelha. E o sangue se fará porque o mal deve ser combatido. Mas quem pegará em armas será o povo, o sangue será do povo por Bolsonaro e por Deus. O sangue de Bolsonaro não derrama, nem com faca.
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