Fui um desses. Lá pelos longínquos 1999-2000 fui espírita. Li o que se esperava de um espírita, pelo menos na época. A codificação básica de Allan Kardec foi estudada, alguns livros li mais de duas vezes. Depois comecei a me interessar pelos escritos de Mesmer e o então chamado magnetismo. Participei de grupos de estudo sobre mediunidade, que tinha - claro! - enfoque em Kardec, mas também na literatura de Chico Xavier.
Dizem, contudo, que espírita bom não é aquele de livro, apenas. Então, fiz o que pude quanto à famosa "caridade". Dei aulas de apoio escolar como voluntário em meu centro para crianças. Mas o que eu gostava mesmo era do trabalho com população de rua. Uma vez por mês saíamos de carreata oferecendo alimentação para os necessitados. Mas para mim, não era suficiente e quis mais. Minha devoção por são Francisco fez-me aproximar ainda mais dessa população e, então, comecei a fazer esse mesmo trabalho por conta própria. Com um grupo de amigos, saíamos todo final de semana pelas ruas do meu bairro com quentinhas nas mãos. Enfim, um espírita típico.
Com o tempo, muitos anos depois, percebi o quanto hipócrita eu era, mesmo sem saber. Como a maioria, pensava que a evolução era uma conquista pessoal, individua, e que requeria um esforço para isso. Esse esforço se materializava pela ida ao centro, leitura, tomar e fazer passes, beber água magnetizada. Depois mais leitura. Sair às ruas, atendendo mendigos. Depois mais leitura. E depois eu voltava para casa, dormia numa cama quentinha, ia para a faculdade e tudo ficava bem. Que vida mais feliz.
Nunca houve uma reflexão sociológica capaz de explicar as motivações das desigualdades. Não tínhamos capacidade de responder o que levava as pessoas a passarem aquelas dificuldades que eu me deparava nas ruas. Quando tínhamos, as respostas eram simplórias e pouco críticas. Não se questionava o status quo, as forças que faziam com que os ricos permanecessem ricos e os pobres permanecessem pobres e sem qualquer possibilidade de cruzamento entre as duas posições. Havia uma distância enorme entre eles e isso era uma coisa que não poderia se mexer, sob o risco de ser chamado de comunista.
Um olhar mais críticos sobre o movimento espírita nos fará perceber as nuances. Não digo que o carro facilitava os trabalhos nas ruas. Mas devemos perceber o símbolo do poder escondido nas entrelinhas. Mais além: o poder daquele que oferece.
A problemática se complica quando comparamos as diferenças de oportunidades. Não é uma questão de dar, de fazer caridade, mas de não precisar dar. Fazer com que as diferenças sejam menores ou inexistentes. O problema era a conjuntura social. Caridade não é sair para oferecer, ser bonzinho e piedoso, mas fazer com a fraternidade se concretize a partir da igualdade de oportunidades.
Aqui, a militância política se confunde com religião. Logo percebemos como, no decorrer dos séculos, o movimento espírita se consolidou mais como um movimento reacionário que busca tão somente a manutenção das coisas como elas são do que uma real transformação da sociedade capaz de repelir o preconceito, a exclusão e o discurso de ódio. Não mais seria possível associar a dificuldade da recepção de um travesti à universidade por achar que era um processo cármico e que ele deveria passar por aquilo para evoluir. Ou, igualmente, pensar que um negro que vive num barraco de madeira na favela não tenha as mesmas oportunidades de trabalho que um branco porque não se esforça o suficiente. E pior: ainda justificar isso usando O Livro dos Espíritos.
Era necessário vincular o discurso espírita com uma nova mentalidade e entender que evolução não era apenas uma questão simplista de dar, mas estabelecer mecanismos sociais justos. A evolução não era uma questão individual, mas social. O desastre de Brumadinho não é um resgate cármico, mas um crime ecológico. E homicídios de pessoas como Chico Mendes, Irmã Dorothy Stang ou Mariele não se trata de qualquer homicídio, como alguém que não foi com a sua cara e deu um tiro, mas como uma tentativa explícita de silenciar uma luta legítima por um lugar melhor para todos nós. Esse era o novo Espiritismo. O Espiritismo de esquerda.
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