Estoicismo Não é Coaching


por Breno Lucano

Foucault será sempre lembrado como o teórico da disciplina. A partir dele temos a teorização de um nundo que tenta, à todo custo, disciplinar os corpos, sujeitá-los, moldá-los. Os regramentos em hospitais, asilos, penitenciárias proporcionam uma visão clara e escura de uma sociedade que diz "não", ao mesmo tempo em que impõe padrões. 

Por outro lado, Byung-Chul Han propõe outra visão dessa nova sociedade pós guerra fria. O autor coreano-germano frisa que vivemos numa transição da sociedade de Focault para a sociedade do desempenho, com um contínuo desejo de maximização da produção. A preocupação pelo bem viver, à qual faz parte também uma convivência bem-sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por sobreviver. 

A narrativa traçada por Chul Han se cruza com a perspectiva do anarcocapitalismo e suas ferramentas para otimizar a produtividade, especialmente num mundo corporativo. E o coaching é um nome comum que merece reflexão. 

Quando falamos em coaching algumas palavras nos vêm à mente, como desenvolvimento pessoal, foco, ampliação da concentração, desvencilhamento de pensamentos negativos. Tudo isso está certo. Mas há muito mais. Em resumo, pode ser definido como um processo que se utiliza de técnicas, ferramentas e conhecimentos diversos em áreas tais como administração, gestão de pessoas, neurociência, psicologia, recursos humanos, etc. Ou seja, muitas palavras que não dizem absolutamente nada. Mas vamos lá! Dizem os coach - os profissionais da área - que a técnica visa um aprimoramento da carreira profissional e pessoal, tendo foco no maior êxito possível. Lembra Chul Han, não?

Existem vários nichos de atuação do coaching, como o de carreira, concursos, corporativo, familiar, relacionamento interpessoal, vendas, recrutamento e até mesmo inteligência emocional. Vale o que a imaginação permitir. Apostam, ainda, em variados benefícios, como evolução e melhoria contínua, agilidade na gestão de mudanças, estruturação de objetivos e metas, maior equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, alinhamento de valores e missão de vida, gerenciamento de tempo e aumento de produtividade. 

Dizem ainda que a filosofia serve também como instrumental, e o estoicismo apresenta posição central no processo. Realmente, se pensarmos no estoicismo imperial, temos coleções de máximas que podem ajudar o coaching. Frases soltas de um Marco Aurélio ou Epicteto, descontextualizadas do texto original, podem passar uma falsa impressão de que um imperador romano tem algo a dizer sobre a vida corporativa do século XXI, ou que um escravo pode nos ajudar a manter a tranquilidade, apesar das cobranças por produtividade e variadas idas ao psicanalista. Variados gurus surgem se afirmando mentores estoicos, aplicando o que chamam de técnicas refinadas de aperfeiçoamento, em treinamento de líderes e de resolução de conflitos, apesar de nunca terem lido Diógenes Laércio e nunca terem ouvido falar Stoicorun Veterum Fragmenta ou Bréhier. Para esses mentores, basta conhecer Cartas à Lucílio ou mesmo Meditações, mas sem as análises de Grimal e McLynn. 

Máximas que incentivam a interiorização do sujeito e a ampliação da visão de um lógos que permeia o mundo podem ajudar a ter alguma resiliência, bem à moda daquela famosa oração da serenidade. A Stoa pode servir ao coaching como mecanismo de aprimoramento de critérios de julgamento, valiosos num mundo corporativo, mas sem entendimento do processo lógico estóico que produz o assentimento e a compreensão cataléptica. Os mentores auxiliam a ter foco como um imperador, mas nada mencionam das polêmicas dos estoicos com Arcesilau e Carnéades. 

O empobrecimento do estoicismo ante o coaching é um problema, mas talvez o menor deles. Confere apenas ao âmbito estritamente acadêmico. Entretanto, existe algo mais. 

O coaching se acopla numa sociedade pensada por Chul Han à medida em que produz instrumental para a otimização da produtividade. Assim, temos essas mesmas máximas de Marco Aurélio ou Sêneca sendo aplicadas num contexto corporativo para que a empresa tenha cada vez mais lucros. De um lado temos recrutadores de RH promovendo campanhas motivacionais para colaboradores, os estimulando a ter resiliência, a aceitar as dificuldades e os próprios limites, a encarar cada setor da corporação como uma estrutura viva e articulada - à semelhança da simpatia universal -, e, de outro lado, temos os acionistas que lucram cada vez mais. 

A quem interessa os ensinamentos estoicos num mundo corporativo? Ao colaborador que tem seu acordo coletivo sendo embargado pelo sindicato patronal? Ao colaborador que possui contrato de trabalho verde e amarelo promulgado por Bolsonaro que estabelece que qualquer coisa acordado entre empregado e empregador possui valor jurídico? 

A teoria dos indiferentes pode ser útil enquanto mecanismo para regular os atritos empregatícios. Você pode ser espoliado pelo anarcocapitalismo, pode não ter reposição da inflação no próximo acordo coletivo, pode até não ter participação de lucros, mas o importante é a experiência de vida que você adquire sendo nosso empregado. Pode ser também que você trabalhe 44 horas semanais por um salário mínimo e sofra medida disciplinar (Foucault de novo?) por ter chegado atrasado porque não tinha com quem deixar seu filho pequeno. Mas Sobre a Brevidade da Vida trará a força necessária para enfrentar as dificuldades. Pode até ser que você precise ser afastar por licença médica em razão de síndrome de Burnout e, ao voltar, seja demitido. Mas o importante é que você seja capaz de se motivar, apesar da fortuna tão falada em Sêneca. 

Mais uma vez a mesma pergunta: a quem serve esse coaching estoico? Será que, ao invés de Sêneca não poderíamos usar Trásea Peto, já que gostam tanto do estoicismo? Ao invés de aceitar as contrariedades, não deveriam se sindicalizar e propor novas condições de vida, como alguém que enfrenta Vespasiano sem medo de ser banido? 

O modelo de estoico é outro. A resiliência propõe mais como uma aceitação do anarcocapitalismo, um sim para a sociedade tal como ela se apresenta, com todas as suas contrariedades dialéticas. A constituição de um Estado ideal, como pensou Zenão, aos moldes da Idade do Ouro nas palavras de Rachel Gazolla, parece se contrapor a esse tipo de Estado que exclui e espolia. Seria no mínimo estranho falar em simpatia universal quando as particularidades são desiguais socialmente e se resumem ao que Agamben chamou de vida nua. 

Mais do que uma simples boa gestão de tempo no mundo corporativo, deveríamos desfigurar a moeda corporativa. Ler os estoicos, mas também ler os céticos, ler os iluministas, ler Marx, ler Chul Han, ler Rorty. E, com eles, tecer uma leitura correta da sociedade.

Uma leitura baseada apenas nos estoicos para ampliar a produção e a aceitação das condições sociais pode não apenas ser insuficiente e profundamente superficial. Indica, antes, além de nada ter entendido sobre o Pórtico, nada ter entendido sobre a sociedade em que se vive. 




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