por Breno Lucano
"Então vá fumar maconha. Maconha ajuda a ter uma vida mais feliz... As implicações lógicas são fundamentais em qualquer discurso filosófico. Mesmo que o resultado disso seja o niilismo, o caos e o desespero... Quem busca a felicidade de bobo-alegre, aquela felicidade baseada numa sentença mágica, num mecanismo milagroso, numa dieta revolucionária é a 'auto-ajuda'". - Resposta de um usuário do G+
Essa resposta foi-me dada como reação a um de meus posts no G+ que se segue:
"Pouco importa se uma dada filosofia faz ou não sentido, se possui implicações lógicas ou metafísicas falsas. A pergunta que se deve fazer é: ela o ajuda a ter uma vida mais feliz?"
Em muitos aspectos achei essa resposta interessante. Ela se refere àquela que possivelmente é a questão central da filosofia, já muito discutida sob variados enfoques: como desfrutar de uma boa vida? Essa questão, como sabemos, foi refletida na antiguidade por variados autores, perpassou o medievo, atingiu a modernidade e encontrou seu ápice na pós-modernidade. Longe de afirmar que uma visão sobrepuja a outra. Isso não seria filosofia, por mais que alguns assim o vejam. Antes, tratam-se apenas de abordagens.
A visão do usuário foi bem acoplada aos antigos, ou melhor, ao racionalismo estrito do estoicismo. Isso porque Platão admite uma antropologia composta pela paixão, pelo aspecto irracional do homem. Essa visão é compartilhada por Aristóteles. Mas é eminentemente negada pela antropologia estóica.
No brilhante texto A Sabedoria Estóica e Seu Destino, Jean Brun desdobra algo sobre a questão. Não devemos nos esquecer que a imagem do sábio estóico é aquele ser - visto pelos próprio Zenão - imaginário, idealizado, impassível, guiado apenas pela razão, sem erro, sem temor, que, através de sua epistemologia não admite apreensões falsas (do grego phantásma) e, por isso mesmo, é feliz. Dos estóicos devemos a noção da felicidade associada com racioanalidade. Mas não qualquer racionalidade. O sábio platônico é também é racional; o sábio cirenaico também é racional. A racionalidade estóica beira ao limite. Trata-se daquela sabedoria que faz com que você, faminto, que não come há dias, ao lhe oferecerem algum alimento, se pergunte se esse alimento não é um Mal. Trata-se daquela sabedoria que, sob um assalto, com uma pistola apontada para a cabeça de seu filho e sob a ameaça, se pergunte se a morte é um Mal em si. E ainda, caso a pistola seja disparada, afirme que nada verdadeiramente valioso se perdeu porque a virtude é o único Bem.
Aprecio a recordação que Brun fez em seu texto sobre Pascal. Também guardo a interpretação de Rachel Gazolla em seu livro O Ofício do Filósofo Estóico. A visão genérica que nos restou é de que esse sábio estóico, muito belo por sinal, pode ser qualquer coisa, menos um homem. Isso porque ele não resguarda algumas características de outras abordagens antropológicas. O homem pode ser realmente muito belo através de sua vida, pode ser um verdadeiro Máximo em Gladiador (sobre isso escrevi o texto Gladiador e Filosofia). Ele pode ser corajoso, destemido, impassível. Mas nem sempre.
Talvez o homem seja muito mais um híbrido, um meio termo entre o herói e o anti-herói estóico, ao mesmo tempo um Superman e um Lex Luthor (veja os textos Superman e Filosofia e Lex Luthor e Filosofia). Ele pode ser generoso sob alguns aspectos, mas em outros ele pode ser mesquinho. Pode ter coragem de reagir à cena do assalto quando sozinho, mas com seu filho pode ser que ele amedronte. Afinal, a vida de seu filho corre perigo. Esse homem pode ser suficientemente grande e imensamente pequeno, frágil em suas mazelas, inseguro quanto ao futuro. Esse homem pode possuir algumas características psicológicas que dificultam suas habilidades sociais, agindo muito mais irracionalmente que racionalmente.
Como profissional da saúde mental vejo isso todos os dias. Como filósofo também. Ou melhor, estou mais inclinado a perceber o homem ante suas dificuldades, seus dilemas (vale recordar o texto sobre loucura baseado no filme Bicho de Sete Cabeças e a Filosofia). O homem fraco paradoxalmente parece mais forte dessa forma: justamente por ter dúvidas e incertezas suas escolhas são mais valiosas. A certeza absoluta pertence ao sábio de Crisipo. O da dúvida se assemelha ao de Pascal, a alguém que, não tendo certeza, aposta porque sabe que nada perderia. No máximo a própria aposta.
As incertezas e à capacidade do desejo ser disperso e direcionado até mesmo para coisas antagônicas, como querer se bronsear com folha de figo e não se queimar, da-se o nome de ambivalência. Ambivalente porque o desejo se deposita onde quer que ele próprio queira. Ele é autônomo, sem controle e irracional. Ele faz com que o sujeito que sempre detestou chocolate fique com água na boca quando vê um maravilhoso sorvete de chocolate; ou que tenha medo de altura tenha vontade de andar de montanha-russa; ou ainda alguém que nunca gostou de baixinhos diga para si mesmo "aquele tampinha é tão bonitinho". Não há um componente racional nessas subjetividades. Há algo irracional. É como uma demonstração da tal da alma dividida, conforme teorizada por santo Agostinho: um único homem com várias almas, com vários direcionamentos, com várias facetas.
Mas pode ser que aquele baixinho seja o tão falado homem da sua vida. Pode ser que aquele sorvete de chocolate mude sua visão. Isso porque o componente irracional possui algo de grandioso, o próprio valor da conquista de algo que é valorizado apenas pelo sujeito. Esse algo pode não ser um valor objetivamente falando, mas para aquele alguém ele possua muito valor. E, ao realizar esse algo, ele se torna muito feliz. Pode ser que alguém não queira uma pepita de ouro (valor objetivo) e procure uma vida mais simples, no campo (valor subjetivo). Embora a racionalidade diga que o ouro pode comprar quantas casas quiser no campo, pode ser que ele não seja procurado.
A racionalidade pode ser útil. Mas é necessário dosagem. Assim como uma dosagem de bromazepan pode levar ao coma, também é necessário a miligramagem correta de racionalidade, sob o risco de "coma virtuoso"; ou, em outras palavras, de uma descaracterização do homem, de um homem que deixou de ser homem, de um homem que matou seu coração para favorecer unicamente sua razão.
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