por Breno Lucano
La Casa de Papel é uma daquelas séries de suspense que te prende a atenção do início ao fim. Criada em 2017 por Álex Pina e estrelada por Úrsula Corberó, Álvaro Morte, entre outros. Vencedor do Emmy de melhor série dramática, teve boas críticas.
A série narra um assalto épico num local absolutamente protegido contra qualquer ameaça: a casa da moeda da Espanha. Um grupo de oito assaltantes, com as mais diversas especialidades (como falsificador de documentos, perito em explosivos e em armas de guerra e um trabalhador de usina), é supervisionado por uma mente brilhante e misteriosa com o nome de Professor. O Professor indaga que cada um adote um nome de uma cidade, para que seus nomes nunca fossem revelados. Assim, nasce Berlin (o hedonista chefe do grupo), Tóquio, Nairóbi, Denver, Rio, Moscow, Oslo e Helsinki.
O Professor coordena à distância a invasão do grupo, que faz mais de 60 reféns, incluindo a filha de um Embaixador. A polícia logo intervém com a negociadora Raquel, mulher durona por fora mas que conserva um passado de abusos domésticos. O assalto ao todo dura entorno de uma semana, com muitos momentos de tensão interna e externa. Por um lado, o grupo deve aprender a lidar com os conflitos gerados entre eles, entre os quais, as relações de poder estabelecidos por um Berlin, paciente terminal de uma doença fictícia e que nada tem a perder. Por outro lado, temos Raquel, sempre na cola do Professor, que se desdobra de mil maneiras para que o grupo não seja descoberto e fazer com que a ação tenha êxito.
O Professor é, de longe, o elemento mais racional do grupo. Ele articula minunciosamente cada detalhe de um plano que fora concebido por seu pai, assaltante que foi executado na porta de um bando por policiais. O Professor é, de algum modo, o ideal do filósofo grego: aquele indivíduo que consegue - ou tenta! - ser impassional, regido unicamente por uma mente fria e calculista, que consegue pensar e milimetrar cada ação da polícia com antecedência e intervir. Exatamente por isso relacionamentos entre os indivíduos do grupo não eram permitidos, sob o risco da ação dar errado por um julgamento apaixonado e excessivamente tendencioso. Mas algo acontece: o Professor se apaixona justamente pela negociadora Raquel!
O Professor conhece os riscos. Sabe que a aproximação excessiva o levará a cometer desvios desnecessários. O colocará em situações imprevisíveis, além de constituir num dilema psicológico: como manter o equilíbrio se a mulher que ama o quer prender, por não saber que ele é o Professor disfarçado. Mas, ainda assim, sabendo que ele é o foragido, entra novamente em conflito porque deve manter a memória do pai e executar o maior de todos os assaltos da Espanha. Certamente, um dilema que Sócrates não passaria.
Para além da imagem estilizada do filósofo como aquele cara que é regido unicamente pela fria razão, Aristóteles tenta uma intermediação - o famoso caminho do meio. Em seu dilema, o Professor percebe a possibilidade de se distanciar tanto da excessiva e fria razão - algo que os estóicos se oporão - quanto da paixão que faz com que os julgamentos sejam afetados negativamente. Em outras palavras, Raquel mostra a possibilidade de se conciliar o plano do assalto às relações amorosas. E, finalmente, ela acaba se associando ao grupo e adotando o nome de Lisboa.
A discussão da série vai por outros rumos, como mostra a intrigante fala do Professor:
“O que fazemos, e que para você parece ruim, os outros também fazem... Em 2011 o Banco Central Europeu não fez nada. 171 bilhões de euros, do nada. Como nós fazemos. Só que fez isso legalmente. 185 bilhões de euros em 2012. 145 bilhões de euros em 2013. Você sabe para onde todo esse dinheiro foi? Para os bancos... da fábrica de dinheiro diretamente para os mais ricos. Alguém disse que o Banco Central Europeu era um ladrão? Chamaram de “injeção de liquidez”. E eles os tiraram do nada. (mostrando uma nota de euro). O que é isso? Não é nada, é papel. Eu faço uma injeção de liquidez não para os bancos. Faço isso para a economia real. Faço para um bando de desgraçados que somos nós...” (LA CASA DE PAPEL, 2018, 2° temporada, Cap. 9).
Até então o que tínhamos era um roubo, como outro qualquer. Mas esse discurso muda tudo e reflete o sucesso da série. Os fans podem se questionar de que modo eles apreciaram ver um bando de homens invadindo uma casa da moeda, fabricando o próprio dinheiro, conseguir fugir e se darem bem no final, como se eles na verdade não estivessem fazendo nada de errado. O roubo aqui se torna uma injeção de liquidez para os desgraçados, para as vítimas da burguesia liberal que satisfaz a economia e o modo de ser e pensar da população mundial. Os bandidos se tornam heróis que combatem um sistema financeiro que, à pretexto de uma franca legalidade, torna tudo viável, inclusive o despejamento por falta de pagamento da prestação da casa. Ora, mas o despejo foi legal: ele não pagou!
Devemos ser bonzinhos, obedecer papai e mamãe e a titia da escola. Devemos crescer e obedecer o policial, mesmo que ele me reviste unicamente por eu ser negro. E se me der um tapa, devo ficar quieto porque ele é a força do Estado que tudo sabe, tudo vê e se preocupa com a população. E se esse mesmo policial mata George Floyd, não devemos nos manifestar.
La Casa de Papel questiona os valores, faz refletir sobre certo e errado, legal e ilegal. E mais, sobre como nosso comportamento é moldado por valores que aprendemos a seguir sem questionar. E, então, torcemos pelo lado errado da história, e ficamos empolgados quando conseguem fugir. Elogiamos o roubo como sendo legítimo porque, no fundo, ele não é um roubo. Estão apenas imprimindo o próprio dinheiro. Não houve morte, não houve lesão à sociedade. Nenhum dinheiro foi roubado. Foi apenas impresso vários milhões de euros do nada, não para bancos, mas para desgraçados.
A população da série dá sua resposta ao evento. Não vêem o assalto como um assalto, mas como protesto. Da mesma forma, não vêem a polícia como representantes do Estado em busca da manutenção da Lei e da Ordem. Não! Antes, são personagens asquerosos que buscam reprimir a população com suas mentiras e ideologias capazes de manter o status quo.
Isso ocorre, em parte, em razão de nossa visão maniqueísta de mundo. Ou seja, o mundo é dividido entre uma perene guerra entre o bem e o mal. E essa divisão abrange também o campo da ética: ou as ações são boas ou são más. Uma boa ação é viver e conviver no mundo como ele é apresentado e uma ação má é tentar reverter essa situação, fazer algo novo.
A lógica do Professor tem sua lógica. Em 2008 o mundo passou por grave recessão, de modo que alguns países da União Européia (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) passaram por grave crise de desemprego e perda de benefícios sociais pago pelo governo. Nesse panorama, uma estratégia usada pelo bloco europeu foi injetar dinheiro nos bancos, de modo que os países imprimiram mais dinheiro nas suas respectivas casas de moeda e salvaram os bancos da falência. Assim, tivemos bancos sendo salvos com dinheiro público ao mesmo tempo em que uma parcela significativa da população passava necessidade.
Se utilizando desse contexto histórico, o autor fez com que o Professor influenciasse diretamente a opinião pública, fazendo com que os vilões passassem a ser os mocinhos da história. A população se sofreu ebulição quando soube, por meio do Professor,que a polícia se recusava a salvar reféns e se importava unicamente pela libertação da filha do embaixador.
Mas se imprimir dinheiro não era um roubo, porque não imprimir para toda a população? Aqui teríamos um problema! Grande soma de recurso produz abundância de consumo, que produzirá escassez. Essa escassez fará com que ocorre inflação e, consequente, perda do poder de compra. Estavam uma encruzilhada! A democracia liberal tem suas regras; o Professor também.
Finalmente, deixo a recomendação do livro abaixo, da Amazon. Ele pode nos trazer pistas novas e abordagens interessantes sobre a série.
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