Por José Cavalcante de Souza
É por oposição aos homens que os deuses homéricos se definem: ao contrário dos humanos, seres terrenos, os deuses são princípios celestes; à diferença dos mortais, escapam à velhice e à morte. Escapam à morte, mas não são eternos nem estão fora do tempo: em princípio pode-se saber de quem cada divindade é filho ou filha. A imortalidade, esta sim, está indissoluvelmente ligada aos deuses que, por oposição aos humanos mortais, são freqüentemente designados de "os imortais" e constituem, em sua organização e em seu comportamento, uma sociedade imortal de nobres celestes.
Em Homero, a noção de virtude (areté), ainda não atenuada por seu posterior uso puramente moral, significava o mais alto ideal cavalheiresco aliado a uma conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro. Identificada a atributos da nobreza, a areté, em seu mais amplo sentido, designava não apenas a excelência humana, como também a superioridade de seres não-humanos, como a força dos deuses ou a rapidez dos cavalos nobres. Só algumas vezes, nos livros finais das epopéias, é que Homero identifica areté com qualidades morais ou espirituais. Em geral, significa força e destreza dos guerreiros ou dos lutadores, valor heróico intimamente vinculado à força física. A virtude em Homero é, portanto, atributo dos nobres, os aristoi.
Estreitamente associada às noções de honra e de dever, representa um atributo que o indivíduo possui desde seu nascimento, a manifestar que descende de ilustres antepassados. Os heróis, quando se apresentam, fazem questão, por isso mesmo, de revelar sua ascendência genealógica, garantia de seu valor pessoal. Os aristoi — os possuidores de areté — são uma minoria que se eleva acima da multidão de homens comuns: se são dotados de virtudes legadas por seus ancestrais, por outro lado precisam dar testemunho de sua excelência, manifestando as mesmas qualidades — valentia, força, habilidade — que caracterizaram seus antepassados. Essa demonstração do valor inato ocorria sobretudo nos combates singulares, nas justas cavalheirescas: as "aristéias" dos grandes heróis épicos. Séculos mais tarde, o pensamento ético e pedagógico de Platão e de Aristóteles estará fundamentado, em grande parte, na ética aristocrática dessa Grécia arcaica expressa nas epopéias homéricas. Só que — sinal de outros tempos — naqueles pensadores a aristocracia de sangue será substituída pela "aristocracia de espírito", baseada no cultivo da investigação científica e filosófica.
Homero parece participar da crença, comum a várias culturas primitivas, de que o homem vivo abriga em si um "duplo", um outro eu. A existência desse "duplo" seria atestada pelos sonhos, quando o outro eu parece sair e realizar peripécias, inclusive envolvendo outros "duplos". A essa concepção de uma dupla existência do homem — como corporeidade perceptível e como imagem a se manifestar nos sonhos — está ligada a interpretação homérica da morte e da alma (psyché). A morte não representaria um nada para o homem: a psyché ou "duplo" desprender-se-ia pela boca ou pela ferida do agonizante, descendo às sombras subterrâneas do Erebo. Desligada definitivamente do corpo (que se decompõe), a psyché passa então a integrar o sombrio cortejo de seres que povoam o reino de Hades. Permanece como uma imagem ou "ídolo", semelhante na aparência ou corpo em que esteve abrigada; mas carece de consciência própria, pois nem sequer conserva as "faculdades" espirituais (inteligência, sensibilidade etc.). Impotentes, as sombras vagantes do Hades não interferem na vida dos homens; assim, não há por que lhes render culto ou buscar seus favores.
Humanizando os deuses e afastando o temor dos mortos, as epopéias homéricas descrevem um mundo luminoso no qual os valores da vida presente são exaltados. Se isso corresponde aos ideais aristocráticos da época, representa também o avanço de um processo de racionalização e laicização da cultura, que conduzirá à visão filosófica e científica de um universo governado pela razão: séculos mais tarde, o filósofo Heráclito de Éfeso fará de Zeus
um dos nomes do Logos, a razão universal.
Na verdade, a Homero os gregos antigos voltarão sempre, não apenas para buscar modelos poéticos: temas e personagens homéricos serão freqüentemente utilizados pelos pensadores para servir de paradigmas ou de recursos argumentativos. As aventuras e o périplo de Ulisses, por exemplo, serão tomados, sobretudo a partir do socratismo dos cínicos, como símbolos morais. O Ulisses que retorna à pátria depois de arrostar e vencer inúmeros perigos e tentações seria o próprio símbolo dos esforços que a alma humana teria de realizar para voltar à sua natureza originária, à sua essencialidade — essa pátria.
Fonte: Coleção Os Pensadores
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