Ética Religiosa X Ética Secular

por Breno Lucano


Num Estado totalitário, um jovem que pertencente a uma organização secreta e revolucionária é descoberto num certo lugar e perguido pela polícia. Ele foge por becos e ruelas, consegue alcançar a casa da mãe e lá se esconde. Minutos depois, a polícia bate na porta e pergunta: "mãe, seu filho está escondido aqui?"

Aquela mãe poderá mentir?



Outro dia, num debate animado sobre ética, fizeram a seguinte afirmação: não é possível pensarmos num sistema de ética se excluirmos Deus! A afirmação não foi ingênua.

Quando pensamos em ética, alguns religiosos logo pensam em Deus por motivos claros. Deus possui a dupla função de legislador - sanciona o que é Bem e Mal - e juiz - julga quem escolhe livremente o Mal. Nesse sistema cosmológico, não temos espaço para discurssão sobre que espécie de Bem estamos falando: os marcos conceituais são postos de tal modo que não resta outra opção ao devoto decidir por um ou por outro, respondendo pelas consequências das próprias escolhas.



A partir do Iluminismo, Deus foi destronado e colocado em seu lugar o Homem. Ele, o Homem, agora é o deus do próprio Homem. Não há mais afirmações categóricas, distorções da vontade, repressões e neuroses produzidas pela noção de pecado. O Homem não é mais o sujeito que deseja o transcendente com o intuito do encontro consigo mesmo, mas é alguém que vive no tempo presente: extintas as esperanças numa vida futura que nunca chegará - porque a vida termina na morte -, pode-se traçar seu próprio caminho, suas próprias buscas, sem o terrível medo do pecado que o conduziria aos abismos infernais.

A perda do paraíso, contudo, não signfica o aprofundamento no caos. O ateu, segundo a visão dos religiosos, é visto como um "perdido na vida", um sujeito mergulhado em vícios e orgias. É um imoral lascivo que denigre a noção de família, macula a inocência das crianças e é uma afronta à moral e aos bons costumes. O ateu é um imoral!

Ora, quando perguntamos a ateus seus posicionamentos e suas respectivas visões de mundo, não encontramos ninguém que seja torturador de velhinhas indefesas, estuprador ou serial killer, como pensam a maioria dos religiosos. A moral laical ou secular se movimenta em outras direções e vai encontro a novos significados de êthos.

A discordância das duas eticidades é clara:

* se a ética secular confia na Razão Humana como origem da liberdade, a ética religiosa confia na fé como produtora de salvação;

* se a ética secular prega a liberdade individual do aqui e agora, a ética religiosa afirma normas universais já presentes nos sábios chineses, em Aristóteles, nos estóicos, em Kant.

* se a ética secular prega a liberdade sexual e confia no preservativo contra as doenças, a ética religiosa propõe como profilaxia a fidelidade n amor e a espiritualidade do sexo;

* se a ética secular defende o prazer dos sentidos, a religiosa pratica o celibato dos ministros cristãos e budistas.

As diferenças são inúmeras.

Se Deus foi destronado, o que serve de referencial para a eticidade? A Razão. Dessa forma, várias teses éticas foram apresentadas.

* Ética do Dever: o Bem reside no Dever, como em Kant;

* Ética Niilista: o Bem é o Nada, como em Nietzsche e Sartre;

* Ética da Responsabilidade: o Bem é a Vida do Planeta, como em Jonas;

* Ética do Discurso ou Consenso: O Bem reside no concenso, como no círculo de Viena, Wittgenstein, Apel, Habermas;

* Ética Utilitarista: O Bem é o que é Útil, como em Bentham, Mill, Rorty.

* Ética do Prazer (hedonismo): o Bem é o Prazer, como em Epicuro, Foucault, Onfray, Misrahi, Comte-Sponville.

* Ética da Justiça: O Bem é a Justiça nas Diferenças, como em Rawls.

Se entendermos que o êthos possui necessariamente significado de serviço - nunca de servir-se de -, entenderemos que, embora o referencial teórico seja diverso, as duas éticas possuem pontos em comum. E, embora as éticas seculares possuam aderência maior entre os acadêmicos, qualquer popular pode se utilizar de um prerrogativo kantiano para julgar uma ação como dever ou Rawls para julgar o que é justo. Até mesmo em Sade encontramos abordagens teóricas capazes de produzir genuína felicidade. E, em nenhuma dessas posturas, Deus está presente.

Falta aos religiosos apenas um pouco de leitura e interesse em procurar algo que não seja a Bíblia. E entender que o Bem pode não residir apenas em Deus, mas na convergência do que é disperso, espalhado. Talvez tivéssemos menos gays apanhando nas ruas se assim o fosse.





                                                


Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

5 comentários :

  1. A descontrução de um deus propagador da paz e desenvolvimento humano é contínua e lenta. Mas, ainda assim, necessária.

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  2. Argumentação poderosíssima.
    Mas acabo duvidando da capacidade de extrair a religião da cultura sem invalidar seus valores e imperativos permanentemente. A moral laica existe mesmo, e pode ser baseada nos pressupostos supracitados; mas as três grandes religiões monoteístas por milênios tornaram a ética tão dependente de seus preceitos que me causa certo assombro pensar em dissociar ética e religião. Me pergunto: talvez seja possível, mas a humanidade sobreviveria a esse processo?

    Um excelente texto, sem dúvida!
    Abraço.

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  3. Fábio, é interessante essa discurssão: de fato, nos desabituamos a pensar ética sem deus. De modo que o ateu é visto sempre como um degenerado, um inescrupuloso, um cara nada legal! A proposta de meu texto foi mostrar que pode ser de outra forma. E que, apesar de deus determinar uma moralidade, também podemos pensá-la sem deus.

    Grande abraço!

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  4. Lucano, quando se tem um experiencia com o sobrenatural, que as religiões o sabem de forma diversa, tem uma convicção que devemos algo a Ele. É como voce se encontrar com um grande traficante ou um grande senhor feudal, mal comparando, sentimos que nossa vida está por um fio. O temor ocorre, pelo fato não sabermos que tem poder para nos tirar a vida pelo seu bel prazer, daí todo cuidado é pouco. Então, depois de nos prostrarmos diante deste poder pouco conhecido, recebemos sinais em resposta a esta ou aquela forma de "servi-lo". Daí decorre um diálogo e recebemos muitos "presentes", então como não amar o que se chama DEUS? Percebemos que Ele nos ajuda, nos direciona pelo que caminho da vida com mais acertos, descobrimos, mesmo que tateando, num lugar escuro, que ser conduzido é melhor que se conduzir, por mais que a razão saiba escolher. Assim, são os religiosos, e a ética religiosa é formada destes diálogos com o Eterno. A vida não termina com a morte, há registros de testemunhos muito sérios nesse sentido. Seria uma temeridade contra a razão crer que um Faraó mandasse embalsamar o seu corpo por orientação de um guru se não houvesse razões para tal. Todos nós ou temos ou teremos estes contatos, daí vem a necessidade de explica-los e de estabelecer novos encontros, pois é muito mais gozoso que o a felicidade em momentos, se percebe que é o objetivo da vida. O homem o procura na razão, mas o encontra na fé. Pensa que é uma esposa, depois pensa que é um filho, depois pensa que é o acumulo de bens e talvez o trabalho bem realizado, mas sempre falta o preenchimento do vazio. Quem nos fez deixou um espaço dentro de nossa mente para ser satisfeito apenas por Ele. As religiões fazem isso de alguma maneira. Como não é possível explicar por razão humana, ou se nega e atribui a mitologia os fatos ou assume contra a razão que não sabe descrever com textos bem elaborados. A razão, assim, não é o fim, mas o fim do homem e o começo de DEUS.

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