Dante's Cove: Análise Filosófica

Por Breno Lucano

Criado por Mike Costanza em 2005 e tendo as Ilhas Turcas e Caico (1 temporada) e Havaí (2 e 3 temporadas) como locação, o seriado se inicia em 1840. Grace Neville, poderosa bruxa de Tresum da Casa da Lua, flagra seu pretendido, Ambrosius Vallin, transando com seu mordomo, Raymond. Enfurecida, Grace lança uma maldição sobre Ambrosius, encarcerando-o no porão de sua casa, pela eternidade, avisando que havia, contudo, um único meio de salvação: o beijo de um jovem rapaz o libertaria. Ao longo de mais de 150 anos, Diana Childs, irmã de Grace, se encontra secretamente com Ambrosius no porão para o ensinar sobre os poderes da Casa do Sol, o aspecto masculino de Tresum. Nos dias atuais, fugindo de uma vida infeliz em sua casa, Kevin vai para a pequena ilha paradisíaca de Dante's Cove para morar com seu namorado Toby, no mesmo antigo casarão, hoje transformado numa república de jovens. Por meio de seus poderes sobrenaturais, Ambrosius conduz Kevin ao seu cárcere e o faz beijá-lo. O feitiço de Grace finalmente se desfaz. Mas o feiticeiro se apaixona pelo jovem. Assim, sua principal atividade nas três temporadas do seriado - e certamente na quarta, em produção - é a tentativa de conquistar Kevin e utilizando seus poderes e matar Toby, o namorado maldito.


Ao longo dos episódios, Ambrosius tenta matar Toby com um machado, o afoga, tenta dizimá-lo com sua magia. Nutri-se dos poderes místicos de Kevin no solstício de libra e chega mesmo a escravisá-lo. Mata sua mãe, Emily Vallin, assim como as crianças Steve e Betty em setembro de 1954. Absorve o poder vital de vários homens em The Lair, quase levando-os à morte, além de atentar contra Grace várias vezes, sua maior inimiga. Mente, maquina e utiliza seus poderes em proveito próprio a todo instante.

Clássica cena na piscina de Toby e Kevin
O centro da discurssão se baseia na seguinte pergunta: por que não fazer algo quando se pode fazer, tendo a certeza de que nunca será punido? Platão explana essa questão com seu famoso anel de Giges. A afirmativa platônica é assustador: se existissem dois anéis, um para o homem justo e o outro para o injusto, nenhum dos dois perseveraria em ações para o bem-comum porque ambos não teriam receio em mentir, unir-se a quem lhe agradasse, matando uns, torturando outros. O poder de Tresum dispensa qualquer preocupação  quanto aos meios e suas consequências. Giges mata o rei, Ambrosius tenta matar Toby. Nada o julga, nada o impede, senão sua própria vontade e sua própria moral. Ambrosius se utiliza de Tresum tanto quanto Van, que enfeitiça sua namorada Michelle para que esqueça de alguns fatos. Existem apenas desejos e cada qual o sacia como pode. O anel de Giges e Tresum nos revela quem somos.

Com a vontade sem os limites da moral, a destruição se implanta. Mas as virtudes também se aparentam maiores. A moralidade se torna mais visível em Griffith, o Consul de Tresum, que, seguindo as ordens de seus superiores, pune Diana subtraindo seus poderes. Não mais por vontade, mas por dever. Não questiona as ordens, apenas envia o receptáculo da Casa das Sombras ao Consulado.

Comte-Sponville lembra no livro Viver: "... mesmo invisível, mesmo invencível, há atos que não me autorizo e outros me sinto obrigado." Ambrosius pode tudo, Diana e Grace também. Mas o poder obedece os limites da própria moral. Diana utiliza suas capacidades na divulgação da cultura ao comprar a sociedade histórica e, o que é mais importante, no retorno ao tempo para salvar seu pai da morte certa em favor das tradições da Casa da Lua. Ambrossius vacila ao tentar matar Toby com o machado; Diana se arrepende de ter participado do solstício e liberado a Casa das Sombras; Grace se envergonha no The Lair.

Grace e Ambrosius em 1840
Nada resta senão a dignidade que acompanha a moral. A virtude é precisamente isso, a tentativa de escapar do erro, do engano. E todo erro é indigno. Tresum produz possibilidades; a dignidade, diretrizes.

O problema se concentra na liberdade. O mal moral apenas o é pelo exercício da liberdade. Um louco é legitimamente considerado irresponsável por seus atos por mais cruéis que pareçam pela ausência da escolha - a loucura. O mal é feito, certamente, mas sem vontade. Perigoso, mas não malvado. Assim como os criminosos passionais - Grace prende Ambrossius num cárcere por 150 anos após sua traição. A possibilidade de virtude torna o vício real, disperso por Dante's Cove. Ninguém faz o mal se não é livre de fazer o bem. Donde o raciocínio aporético: ninguém é mau voluntariamente; se o mal existe, então não o é por escolha, mas por necessidade. Nessa hipótese, alguém é mau, absolutamente mau, e seus atos decorrem de sua natureza: a ele é vedada a virtude. E se lhe é vedada a virtude, não deve ser reprovado, já que o mal é sua essência, sua vida. E ninguém escolhe viver. Mas o mal, dizem, também é resultado das condições de vida, de família, educação e acontecimento. Ambrosius se dilapida pelas injustiças pelo qual passou, pelo cárcere, por uma felicidade sempre desejada e nunca alcançada. Mas se as condições ambientais interferem na juízo, também não há culpa porquanto não há escolha. "Ninguém é mau sem querer; mas ninguém quer sê-lo se já não o é", conclui Comte-Sponville.

Imperativo da moral: se é necessário que se viva honestamente, não é porque a lei manda, mas porque o contrário seria vergonhoso. A lei permite muitas coisas que o sábio se veda: mentira, avareza, ... Também proíbe outras que o sábio poderia se autorizar: o roubo pode não ser vergonhoso em algumas circunstâncias.

O itinerário como propósito. Trata-se de não viver para, mas apenas viver. Nada esperar, mas fazer da necessidade, virtude. Construir-se, inventar-se e, uma vez mais, re-inventar-se. Fazer-se em sua singularidade estética e alcançar a realidade última de Dante's Cove: Tresum.


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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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