A possibilidade de prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro em decorrência das investigações sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 tem gerado amplos debates na esfera jurídica, política e sociológica. No contexto das democracias contemporâneas, a responsabilização de líderes políticos por crimes cometidos durante o exercício de suas funções ou em sua trajetória política levanta questões fundamentais sobre a solidez das instituições e a eficácia do Estado de Direito. A teoria social, especialmente a partir de autores como Max Weber, Jürgen Habermas e Pierre Bourdieu, pode fornecer elementos cruciais para interpretar o significado sociopolítico dessa possível prisão.
A sociologia política há muito se debruça sobre o papel das elites governamentais e a forma como elas interagem com as estruturas institucionais. Weber, em "A Política como Vocação", argumenta que a dominação carismática, muitas vezes associada a líderes populistas, pode entrar em conflito com as regras burocráticas e racionais do Estado moderno. Bolsonaro, ao longo de seu mandato, construiu uma imagem de líder avesso às normas institucionais, frequentemente atacando o Judiciário, a mídia e a oposição. Sua possível prisão, nesse sentido, representa não apenas uma questão jurídica, mas também um choque entre formas de dominação política.
A investigação conduzida pela Polícia Federal sobre o envolvimento do ex-presidente em articulações golpistas reflete uma tensão constante entre a democracia e a tentativa de captura do poder por meios autoritários. Como alerta Habermas em sua obra "Direito e Democracia", a democracia moderna depende da coexistência entre a legalidade formal e a legitimidade comunicativa. No caso brasileiro, a insurgência de 8 de janeiro de 2023 demonstrou que há setores da sociedade dispostos a desafiar essa ordem e, mais do que isso, que existiam estruturas organizadas para minar o sistema democrático.
As manifestações golpistas ocorridas no Brasil, seguindo uma lógica similar à invasão do Capitólio nos Estados Unidos em 2021, revelam uma crise da democracia representativa e uma fragilização da confiança institucional. Norberto Bobbio, em "O Futuro da Democracia", já alertava que a transparência e a vigilância das instituições seriam fundamentais para impedir a ascensão de forças antidemocráticas. A possibilidade de Bolsonaro ser preso não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um esforço mais amplo para restabelecer os limites do poder e garantir que a impunidade não incentive novas ameaças à ordem democrática.
O fenômeno do bolsonarismo, entendido como um movimento político e cultural, também precisa ser analisado à luz da teoria social. Pierre Bourdieu, em "O Poder Simbólico", explica como a linguagem política e os discursos legitimam formas de dominação e perpetuam estruturas de poder. Durante seu governo, Bolsonaro utilizou uma retórica beligerante contra as instituições democráticas, desqualificando adversários e fomentando um clima de polarização extrema. Sua eventual prisão pode ser interpretada como uma resposta do sistema jurídico a esse tensionamento institucional, mas também como um momento decisivo para a reconstrução da normalidade democrática.
A relação entre lideranças autoritárias e suas bases sociais também é um tema de interesse na sociologia. Giorgio Agamben, em "Homo Sacer", discute a noção de estado de exceção como uma ferramenta fundamental utilizada por regimes políticos para suspender garantias legais e afirmar o poder soberano. No caso brasileiro, Bolsonaro frequentemente flertou com essa ideia, sugerindo que determinadas crises exigiriam medidas extraordinárias, inclusive ataques ao Supremo Tribunal Federal e ameaças veladas às instituições democráticas. A sua possível prisão pode ser entendida, portanto, como uma reconfiguração do espaço jurídico-político, na qual a democracia busca reafirmar sua capacidade de limitar o poder e evitar que figuras públicas operem fora das margens da legalidade.
A investigação sobre o golpe de 8 de janeiro aponta para uma estrutura organizada que contava com apoio dentro do aparato estatal e militar. Michel Foucault, em "Vigiar e Punir", argumenta que o poder disciplinar se exerce através de mecanismos que operam tanto na repressão quanto na vigilância contínua. A ação da Polícia Federal ao desarticular redes bolsonaristas envolvidas na tentativa de ruptura institucional segue essa lógica, demonstrando que o Estado tem meios para neutralizar ameaças à ordem democrática. Contudo, a prisão de Bolsonaro poderia também se tornar um elemento de radicalização para seus seguidores, realimentando narrativas conspiratórias.
Do ponto de vista jurídico, a possibilidade de prisão de Bolsonaro levanta debates sobre seletividade penal e a eficácia das punições contra elites políticas. A sociologia do direito, influenciada por autores como Émile Durkheim, destaca a função social da punição como um mecanismo de reafirmação das normas coletivas. Em "As Regras do Método Sociológico", Durkheim sugere que a aplicação da justiça contra figuras públicas tem um caráter exemplar, reforçando os valores fundamentais da sociedade. Se Bolsonaro for preso, isso pode representar um marco na história política brasileira, indicando um amadurecimento das instituições democráticas e do sistema de responsabilização legal.
A politização do judiciário, por outro lado, é um risco que precisa ser considerado. Carl Schmitt, em "Teologia Política", argumenta que o poder jurídico não é neutro e que as decisões judiciais muitas vezes carregam forte carga política. A esquerda e a direita, ao longo da história brasileira, já acusaram o Supremo Tribunal Federal e outras instâncias da Justiça de atuarem de maneira seletiva, o que pode gerar desafios para a legitimidade da eventual condenação de Bolsonaro. Dessa forma, a reação dos diferentes segmentos sociais à prisão do ex-presidente será um indicativo do grau de confiança que a população deposita nas instituições.
Se a prisão de Bolsonaro ocorrer, será necessário analisar quais serão as reações do bolsonarismo como movimento social. Jeffrey Alexander, em "Performances Sociais", sugere que eventos políticos de grande impacto são narrativizados e reinterpretados de acordo com os interesses dos atores envolvidos. A eventual detenção do ex-presidente pode fortalecer o mito da perseguição política entre seus seguidores, dificultando a superação definitiva do bolsonarismo no cenário político nacional.
Por fim, a relação entre Estado, democracia e justiça continua a ser um dos temas centrais da sociologia política. A prisão de Bolsonaro, caso ocorra, terá implicações que transcendem o campo jurídico, representando um momento decisivo para a consolidação do Estado de Direito no Brasil. A resposta das instituições, da sociedade civil e dos movimentos políticos será fundamental para determinar os rumos da democracia brasileira nos próximos anos. Como bem observou Hannah Arendt em "Origens do Totalitarismo", o enfraquecimento das normas democráticas começa quando se permite que figuras públicas ajam impunemente. Resta saber se o Brasil aprenderá essa lição histórica ou se, mais uma vez, será refém da impunidade.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ALEXANDER, Jeffrey C. Performances sociais: ensaios sobre a teoria cultural. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
SCHMITT, Carl. Teologia política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
WEBER, Max. A política como vocação. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.
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