Nós e o Mito

Por Noberto Luiz Guarinello

Ao contrário dos nossos mitos contemporâneos, celebridades fugazes muitas vezes criadas pela imposição da mídia, os mitos gregos serviam para dar sentido ao mundo e à existência humana. Seus deuses ajudaram o homem a compreender uma natureza repleta de mistérios e, também, a escrever a historia de uma civilização que permanece, até hoje, como uma das mais magníficas de todos os tempos.

Todas as sociedades, em todas as épocas, têm seus mitos, suas lendas e seus heróis, que expressam a maneira como os homens se relacionam entre si e com o mundo. Os mitos e heróis contemporâneos são fugazes, midiáticos, celebridades bem humanas que despontam e se apagam ao sabor da novidade, no fluxo incessante de notícias e informações que nos bombardeiam a cada dia, num ritmo sempre crescente. Nossos verdadeiros mitos deslocam-se para o futuro, para objetivos a serem alcançados: desenvolvimento sustentável, diminuição das desigualdades, fim da fome, paz mundial, etc. São, na verdade, promessas, esperanças de um mundo melhor. Dão sentido a nossa existência cotidiana, projetando nossas ações para algo além da realidade presente, algo melhor, algo superior, como ma ninfa grega que perseguíssemos pelos bosques da modernidade, sem nunca alcançá-la.

Os mitos dos nossos antepassados culturais, os gregos, também se inscreviam em uma busca de sentido para o mundo e para a existência humana. Faziam-no, contudo, de modo diferente. Devemos ter em mente as distancias e diferenças que nos separam daquele mundo. Dispersos em cidades localizadas as margens do Mediterrâneo, em contato forçado e permanente com outros povos e culturas, os gregos viviam num mundo fragmentado social e politicamente, que só aos poucos se integraria no Império romano. Sem os recursos da ciência moderna, defrontavam-se com uma natureza cercada de mistérios, com efeitos cujas causas desconheciam, com territórios que só podiam visitar pelas asas da imaginação, com um passado que, sendo causa do presente, lhes era vedado a conhecer, pois não possuíam os instrumentos que só a ciência histórica desenvolveu a partir do século XIX.
Para os gregos, assim, mito era a história antes da história. Dava sentido ao tempo e permitia narrá-lo como algo conhecido, antes mesmo do conhecível, anterior ao que estava ao alcance do conhecimento humano. Num certo sentido, era uma estória, ou conjunto de estórias, envolvendo diferentes personagens, humanos e divinos, que se colocava antes da historia. Prescindia, desde modo, de documentos, fundando-se em tradições orais, transmitidas de gerações em geração e sobre as quais atuava mais a crença que o conhecimento, dando sentido ao tempo e ao mundo conhecido.
Mas a mitologia, sendo crença, tampouco era uma religião. Associava o universo do sagrado e o do profano como intrinsecamente unidos. A religião não se separa da vida cotidiana, nem os deuses ocupavam um lugar à parte. Seu mundo entrecruzava-se com o dos mortais, que era povoado por divindades, boas ou más, e que era preciso apaziguar ou tornar propícias. Os deuses estavam em toda parte e em cada lugar. Por isso, ao falarmos de mitos antigos, nosso critério científico, que separa o falso do verdadeiro, não se aplica. O mito grego combinava narrativas sobre eventos relativos a deuses e a mortais, coisa que denominaríamos sagradas e outras profanas, estórias populares e locais com narrativas mais amplas, profundas, até mesmo sobre as origens do universo.
Na verdade, sabem hoje os historiadores, nunca houve uma mitologia grega como algo sistematizado e acabado. O que chamamos de mitologia foi o resultado de séculos de criação e invenção. Foi o produto das narrativas de muitos povos e cidades, que aceitaram influencias de toda parte, sempre abertos à absorção de novos mitos e de novas crenças. Nunca houve um livro sagrado, um cânone dos mitos, nem sacerdotes que os cultuassem e os reproduzissem. O que chamamos de mitologia é, de fato, o resultado de um longo processo de construção de uma identidade religiosa no Mediterrâneo antigo, mas que jamais se consolidou como uma religião oficial. Como resultado da integração progressiva de povos e cidades distintas, a mitologia antiga, como a religião dos povos da antiguidade, sempre preservou um caráter aberto. Ou seja, todos os mitos, locais, regionais, supra-regionais, encontravam seu lugar numa narrativa mais ampla, que englobava a todos, mesmo à custa de ambigüidades contradições. Havia, por exemplo, vários deuses com o nome de Zeus, ou Apolo, todos com estórias diferentes. Os romanos, em particular, adotaram as divindades gregas, a elas dando os nomes de seus deuses locais, tal como aparecem nos capítulos de revistas que o leitor tem em mãos, assumindo as diferentes versões de uma mitologia que, em princípio, lhes era estranha.
A apropriação pelos romanos dos mitos gregos nos revela outra faceta da mitologia. Esta nunca foi um corpo acabado de narrativas, mas sempre uma narrativa em processo de construção. Devemos ter em mente que a mitologia foi também, inseparavelmente, literatura. Todos os mitos gregos que conhecemos foram colhidos, ou produzidos e inventados por poetas, que podiam criar suas próprias versões dos mitos.
Foi a poesia, a partir de Homero, que recolheu mitos locais e os unificou numa grande mitologia, numa mitologia em que todos os gregos, e os povos influenciados por sua cultura, se reconheciam e se identificavam. A mitologia é uma obra, um trabalho, ao mesmo tempo religioso e poético. Nesse sentido, a poesia sobrepôs-se às tradições locais, criando um conjunto mais ou menos coerente de estórias. As grandes fontes da mitologia foram os dois grandes épicos atribuídos a Homero, a Ilíada e a Odisséia, os dois poemas de Hesíodo, a Teogonia e Os Trabalhos e Os Dias, os chamados Poemas Homéricos e, no século V AC, as obras dos tragediógrafos atenienses, como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
Em seu conjunto, compõem uma narrativa incoerente e, sob muitos aspectos, contraditória. A mitologia, tal como a conhecemos, foi obra de autores posteriores, que tentaram sistematizar e ordenar as narrativas míticas, eliminando suas contradições, como a Biblioteca de Apolodoro, ou as Metamorfoses de Ovídio, nas quais, em grande parte, o presente texto se baseia. Mas nunca conseguiram dar unidade e coerência a narrativas que tinham sua origem em relatos orais e produzidos em localidades diferentes.
A despeito da variedade e das incongruências que encontramos nas narrativas dos mitos, podemos reparti-los em quatro tempos distintos que representam, para os gregos, o tempo transcorrido antes da história dos homens: as cosmogonias, que tratam da criação do mundo e cujo principal representante é Hesíodo; as narrativas envolvendo os deuses do Olimpo e suas aventuras num mundo em que deuses e homens se misturavam, tal como aparecem em Homero; os ciclos heróicos, que narram as aventuras de homens que eram ainda semideuses, porque filhos de deuses, mas já se aproximavam do tempo e da realidade humanas, como as estórias de Hércules, de Perseu ou de Cadmo; e, por fim, as narrativas heróicas da Guerra de Tróia, que alguns gregos, como o historiador Tucídides, consideravam como plenamente históricas.
Acreditavam os gregos em seus mitos? A resposta é difícil e depende da época e dos autores que os relatam. Um viajante como Pausânias, que no século II de nossa era percorreu a antiga Grécia, relatava os mitos locais de cada lugar que visitava e via, na sua própria antiguidade, a prova de sua veracidade. Muitos ritos locais, já bem adentrado o Império Romano, reproduziam as narrativas dos mitos em suas cerimônias religiosas e em suas festividades locais. Outros já tratavam os mitos como alegorias, considerando os deuses e heróis como personificações de um universo ético e moral e, portanto, essencialmente humano.
Quando o pensamento moderno, a partir do século XVI, voltou-se para os mitos gregos, considerou-os, a princípio, como narrativas semi-históricas, das quais era possível obter informações concretas, desde que desvinculadas de seus pressupostos religiosos. Foi só a partir de meados do século XIX que os mitos gregos foram relegados à posição de narrativas fantasiosas. George Grote, assumindo uma postura que se revelaria dominante a partir de então, declarou, na metade do século XIX, que a História Grega, realmente documentada, começava apenas com a primeira Olimpíada, em 776 AC. Essa posição domina a historiografia até nossos dias. O que não significa que os mitos gregos tenham perdido sua eficácia. São célebres as tentativas de identificar, na mitologia grega, conceitos universais que poderiam ser aplicados á humanidade como um todo. O exemplo mais bem conhecido é, talvez, o do complexo de Édipo, que jaz no cerce da teoria freudiana sobre a personalidade humana, mas vários experimentos foram feitos, já no século XX, para descobrir, nos mitos, verdades imorredouras sobre o Homem, de Carl Jung a Lévi-Strauss e Jean-Pierre Vernant. Na estória dos deuses, como naquelas dos heróis cuja sagra pertence também à mitologia, encontramos, com efeito, certas oposições e estruturas que parecem comuns às sociedades humanas, como a contraposição entre mortal e imortal, entre pais e filhos, entre homem e natureza, entre masculino e feminino. Nesse sentido, os mitos gregos ainda falam para nós e de nós.
É a esse mundo que a obra de Thomas Bulfinch nos remete, com breves incursões nas mitologias hindu e nórdica. O autor, baseando-se fundamentalmente em Ovídio, narra as estórias da mitologia grega de modo eficiente e cativante, deixando, poucas vezes, escapar seus preconceitos de anglicano. Em certo sentido, ao narrar a mitologia greco-romana, coloca-se no grande fluxo narrativo que nos aproxima dos amigos, deixando que, em sua narração, irrompam narrativas recentes, extraídas sobretudo da poesia inglesa, de Milton a Byron, como a mostra que a força evocativa da mitologia não morreu, mas é parte integrante de nossa cultura viva, de nossa identidade como seres culturais. E aí reside uma das virtudes do texto que o leitor tem em mãos, a de aproximá-lo de uma realidade totalmente diferente da nossa, mas que esta na raiz do nosso modo de ser e pensar o mundo. Retomando nossas considerações iniciais, diríamos que o mito ainda atua em nossa vida, mas não mais como passado, e sim como futuro. Nossa sociedade não mais olha para o passado como fonte de exemplos, mas para o futuro, como impulso gerador de esperanças, como justificativa de nossas ações presentes. Nossos mitos mudaram de forma e conteúdo, mas continuam essenciais para dar sentido a nossa vida, tanto individual como coletiva. É de esperar que o futuro nos produza histórias e exemplos tão ricos e frutíferos, como o passado mítico trazia aos gregos de outrora.
GUARINELLO, Norberto Luiz. Nós e os Mitos. In:_Mitologia 1: História Viva. Ed. Ediouro: São Paulo.


NOBERTO LUIZ GUARINELLO é professor de História Antiga do Departamento de História da Universidade de São Paulo, doutor em arqueologia clássica, com pós-doutorado nas Universidades de Brown (EUA) e Oxford (Inglaterra), autor dos livros Imperialismo Greco-Romano, São Paulo, Ática, 1986, e Primeiros Habitantes do Brasil, São Paulo, Atual, 1994, e de inúmeros artigos especializados publicados em revistas nacionais e estrangeiras.

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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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