Antínoo

Poucas histórias de amor deixaram tanto eco como a que uniu Adriano a Antínoo, vindo da Bitínia, a noroeste da Ásia Menor. A aparência do jovem é bem conhecida, graças a mais de quinhentos retratos, bustos, cabeças, estátuas e relevos que ainda sobrevivem, criados para atender a devoção do imperador. Eles mostram um belo homem de cabelos encaracolados, corpo bem feito, profundos olhos amendoados, malares altos e boca sensual. “Tu, cuja face é cheia de graça”, cantava uma música em sua honra. No século XIX, passando entre as esculturas romanas no Museu Britânico, o poeta inglês Alfred Tennyson se deteve diante de um busto de Antínoo e declarou: “Eis aqui o inescrutável bitínio. Se soubéssemos o que ele sabia, compreenderíamos o mundo antigo.”



Fossem quais fossem seus conhecimentos, é fácil supor que o jovem bitínio sabia cativar o imperador. É provável que tenham se encontrado na viagem do imperador à Ásia Menor, e talvez Adriano tenha mandado Antínoo completar sua educação em Roma. Alguns historiadores acreditam que ele tenha sido aluno numa escola de treinamento para pajens imperiais no monte Célio onde, sob a direção de um formidável contingente de escravos libertos, os mimados filhos das classes elevadas eram transformados em cortesãos. É possível que fizesse parte do círculo mais íntimo do imperador desde os 18 anos.

Cenas de caçada esculpidas no arco de Constantino, em Roma, concebido (ou talvez concluído) durante o reinado de Adriano, evidenciam a ascensão de Antínoo. Em um medalhão ele aparece participando de uma caçada aos javalis, cavalando ao lado de um dignatário da corte e logo atrás de Adriano. Em outra cena ele pode ser visto em pé, um pouco mais velho e sem os cachos de adolescente, ao lado do imperador e sobre o corpo caído de um leão, morto durante uma célebre caçada no deserto líbico, no ano 130 da Era Cristã.

Quase dezoito séculos mais tarde, em 1910, um retrato dessa aventura foi descoberto em um papiro enrolado dentro de um antigo vaso de cerâmica, encontrado perto do Nilo. O texto, parcialmente decifrável, corresponde a um antigo poema épico escrito por um poeta de Alexandria, celebrando a mesma caçada ao leão exibida no arco, em Roma. A presa era um temível devorador de gente e a perseguição foi realmente excitante. “Adriano foi o primeiro a arremessar sua lança com ponta metálica; ele feriu o animal, sem matá-lo, pois pretendia errar o alvo para testar a segurança da pontaria do belo Antínoo.” Seguiram-se alguns momentos angustiantes, em que a fera se arremessou contra os perseguidores. O manuscrito se torna ilegível a partir do ponto alto da história, mas a triunfante conclusão é decifrável: justamente quando o leão ataca Antínoo, Adriano intervém para desfechar o golpe mortal “com suas próprias mãos.

Durante cerca de três anos, Antínoo foi presença obrigatória na comitiva de Adriano, que também incluía Sabina. Os artistas se empenhavam em criar imagens do favorito imperial. Pelo menos sete esculturas de Antínoo foram encontradas na vila, enquanto só são conhecidas duas da imperatriz Sabina. Antínoo esteve ao lado do imperador em pelo menos uma parte da viagem que Adriano fez para Atenas, no final de 128, prosseguindo depois para o Oriente e pesquisando cultos esotéricos.


Mas os dias de vida em comum não durariam para sempre. Em 130, não muito depois da famosa caça ao leão, a comitiva imperial cruzava o Nilo em direção a Tebas, antiga capital egípcia. Poucos são os detalhes da história da súbita tragédia que ocorreu no caminho. Em uma aldeia de rudes casebres de barro chamada Hirwer os camponeses recolheram das águas o cadáver de Antínoo. Em um fragmento de autobiografia preservado por Dion Cássio consta que Adriano pronunciou apenas as palavras: “ele caiu no rio.” Pode ter sido um simples acidente, mas os biógrafos que escreveram com maior distanciamento o assunto, após algumas gerações, manifestaram dúvida. As sugestões vão desde um ato pífio por parte de rivais, até um sacrifício voluntário do próprio jovem. Alguns propõem, por exemplo, que Antínoo teria se afogado com o nobre propósito de assegurar o domínio de Adriano sob o Egito. Segundo essa versão, ele estaria buscando aplacar os deuses do rio, que por dois anos seguidos vinham reduzindo as fertilizadoras cheias do Nilo.

Em seu sofrimento, Adriano incentivou a deificação de seu companheiro perdido. Em memória dele fundou em Hir-wer a cidade de Antinóopolis, consagrada à memória do bitínio, de frente para a parte do Nilo em que ele havia se afogado. Até os céus lhe ofereceram um monumento, pois logo depois da tragédia os astrônomos de Adriano descobriram um corpo celeste até então desconhecido, localizado entre a águia e o zodíaco. Eles asseguraram a Adriano que se tratava da alma de Antínoo, brilhando na vida eterna. Essa estrela ainda hoje conserva o nome.

O culto a Antínoo se espalhou rapidamente pelos domínios romanos. Ele revestia diferentes formas, sendo venerado em cada região de acordo com a cultura local. Os egípcios associaram Antínoo a Osíris, que morrera no Nilo e fora ressuscitado, trazendo vida nova e fecundidade à terra; entre os gregos e romanos, ele costuma ser associado a uma versão de Dionísio, outro deus da fertilidade e do renascimento. Dez anos depois de sua morte, Antínoo era cultuado em pelo menos quarenta cidades do império oriental, com seus próprios sacerdotes e santuários de culto, em jogos e festivais comemorativos. Entre os anos de 133 e 137, cerca de trinta cidades gregas emitiram moedas e medalhas em sua honra. Na Itália, na Grécia, na Ásia e no oriente próximo, nas oficinas dos escultores ecoavam os sons dos artesãos, torneando centenas de estátuas de Antínoo, em bronze e em mármore.

Onde quer que Roma impusesse seu domínio, o bitínio divinizado encontrava adoradores. As pessoas ricas se adornavam com jóias ostentando seus traços. Os mineiros dos Bálcãs pediram a benção do novo deus para enfrentar os perigos de seu trabalho subterrâneo, em um templo construído especialmente para ele. Na cidade italiana de Lanúvio foi criada uma sociedade funerária tendo Antínoo e Diana por patronos. No interior do Cáucaso, devotos veneravam uma estátua de Antínoo em um santuário na montanha.


A imagem do favorito do imperador se espalhara por lugares nos quais ele jamais pusera os pés, nem mesmo na companhia do andarilho Adriano. Escavando sítios na Holanda, na Renania e ao longo do Danúbio, os arqueólogos desenterraram inúmeros vasos de bronze para incenso, com cópias toscas do rosto famoso. Mesmo na distante Bitínia, Antínoo deve ter sido conhecido, pois no início do século XX um inglês que passeava pelas cercarias de Godmanchester desenterrou uma moeda com sua face cunhada.

Todavia, um mistério incomoda os arqueólogos. O túmulo de Antínoo jamais foi encontrado. Ao explorar as ruínas de Antinóopolis, no final do século XIX, o arqueólogo francês Albert Gayet descobriu 500 mil vasilhas contendo oferendas de peregrinos fiéis ao culto de Antínoo. Pareceu-lhe possível que existisse um túmulo naquela região, “em algum canto perdido nas montanhas”, onde “seu corpo, embalsamado com cuidado, poderia ser devolvido a nós, algum dia. Que revelação para o mundo erudito seria o reaparecimento dessa face tão familiar.” Em Roma, uma inscrição muito danificada e quase indecifrável em um obelisco foi reinterpretada em 1975. Faltam algumas palavras essenciais da misteriosa gravação, elaborada de forma estranha em hieróglifos egípcios; mas a nova interpretação, ainda discutida pelos estudiosos, diz: “Ó, Antínoo! Este falecido, que descansa neste túmulo na propriedade do imperador de Roma.”

Em 1952, os arqueólogos começaram a escavar em Tívoli o trecho da vila conhecido por Canopo. Do antigo curso d’água, retiraram de seu fundo partes de arcos e grande quantidade de pedras. Alguns estudiosos acreditam que tais vestígios podem ter feito parte dos suportes de um teto de pedra, ou de uma abóbada. Estátuas ali encontradas incluíam quatro virgens gregas – cópia das cariátides do Erectêion, na Acrópole de Atenas – e dois sátiros gigantes carregando cestas de frutas. Essas imagens eram familiares na arquitetura fúnebre do tempo de Adriano, aparecendo quase sempre como ornamento das cúpulas sobre os túmulos. Porém, se Antínoo descansa na Vila, ele continua a repousar em paz.



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Adriano



Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

4 comentários :

  1. Muito bom; é o texto melhor que já li a respeito de Antínoo!

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  2. Pessoalmente, também acho que esse é o melhor texto sobre Antínoo. Tive sorte de encontrá-lo num livro esquecido de uma biblioteca empoeirada e transcrevê-lo.

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  3. Bem interessante o texto sobre Antinoo. Talvez um dia veremos o verdadeiro Antinoo saindo das cinzas do passado.

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  4. É uma pena...ainda nenhum cineasta se interessou pela biografia de Adriano e seu romance com o belo Antino. Se um dia isso acontecer, certamente assistirei.

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