Por Willian Li
Sobre a Brevidade da Vida é um pequeno tratado cujo objetivo é convencer Paulino, que ocupa um alto cargo na burocracia imperial, a abandonar seu posto e dedicar-se ao estudo da filosofia. O texto do tratado nos foi transmitido principalmente pelo manuscrito Ambrosianus C 90, que data do século XI. Nele, o seu título completo é Ad Paulinum De Brevitate Vitae, e ele pertence ao grupo dos diálogos de Sêneca.
Três são as questões a serem tratadas, em primeiro lugar, com relação a Sobre a Brevidade da Vida: a identificação do destinatário, a data da obra e o momento histórico da composição. Essas três questões estão intimamente ligadas e são todas interdependentes. Delas depende em grande parte a interpretação do conteúdo do tratado e das intenções de Sêneca ao escrevê-lo.
O texto de Sobre a Brevidade da Vida não nos informa quem era Paulino, nem quando este teria recebido o pequeno tratado. Informa apenas que Paulino era o encarregado do abastecimento de trigo em Roma (praefectus annonae). A identidade deste personagem foi estabelecida por J. Carcopino em 1922, e ela não é mais questionada pelos estudiosos de Sêneca. Trata-se de Pompeius Paulinus, cavaleiro de Arles e que ascendeu à classe senatorial no tempo de Cláudio e Nero. Este Paulinus teve dois filhos: Pompeius Paulinus, mencionado por Tácito nos Anais (13.53), e Pompeia Paulina, mulher de Sêneca. A identidade de nomes entre Paulino "pai" e "filho" deixou por algum tempo em dúvida os comentadores, quanto ao verdadeiro destinatário do tratado, mas hoje é geralmente aceito que Sobre a Brevidade da Vida destina-se ao sogro de Sêneca, o praefectus annonae Pompeius Paulinsu.
A questão da data do tratado é mais polêmica, e até hoje a discurssão se mantém em torno de três datas possíveis. A datação é uma questão crucial, pois a adoção de uma data norteará toda a interpretação do tratado. Essa polêmica entorno da datação remonta a Justus Lipsius, no século XVII, e se prolonga até os dias de hoje. Duas são as principais datas defendidas: 49, proposta pela primeira vez por Hirschfeld, em 1870, e adotada atualmente por Grimal; e 62, proposta por Dessau, em 1914, e atualmente seguida por Hermann em sua cronologia de 1937.
A data de 49 é a que tem maior número de adeptos. O estabelecimento desta data depende quase exclusivamente do "argumento pomerium". Trata-se do seguinte: numa passagem de Sobre a Brevidade da Vida (13.8), Sêneca menciona um conferencista que ele ouvira logo antes e que debatia as razões pelas quais o Aventino estaria fora dos limites do pomerium - o pomerium era o espaço consagrado em Roma, onde não era permitido cultivar nem construir. Seus limites eram aumentados, quando Roma realizava alguma conquista territorial. Ora, sabe-se que Cláudio incluiu o Aventino no pomerium em 49 Dc. Daí muitos estudiosos concluíram que o tratado de Sêneca foi composto em 49, logo após sua volta do exílio. No entanto, se examinarmos mais detidamente o contexto do trecho em questão, veremos que Sêneca está criticando a erudição vã (13.8). Um dos exemplos desse tipo de erudição é a preocupação com a extensão do pomerium. Não há nada no texto de Sêneca que indique que ele aceita a tese do retórico que está sendo criticado. Por isso, não é lícito supor que o Aventino estivesse efetivamente fora dos limites do pomerium, quando da composição do tratado. Parece-nos paradoxal que tantos estudiosos de Sêneca tenham se debruçado sobre uma questão que ele mesmo considerava futilíssima e tenham se dedicado tanto a um tipo de erudição que Sêneca está justamene empenhado em criticar.
Independentemene dos problemas técnicos de datação interna, temos de examinar o conteúdo mesmo do tratado e sua relação com o momento político vivido por Sêneca. A finalidade principal de Sobre a Brevidade da Vida é exortar seu destinatário, que ocupava uma das das mais importantes funções da burocracia imperial e além disso é também sogro de Sêneca, a abandonar a vida pública e dedicar-se ao ócio literário e ao estudo da filosofia. Apesar de sua fundamentação técnica, a tese de 49 choca-se com o conteúdo mesmo do tratado. Em 49, Sêneca é chamado de volta do exílio por Agripina e foi ao mesmo tempo designado pretor (Tácito, Anais 12.8). Assumiu ainda a responsabilidade pela educação do jovem Domício, o futuro imperador Nero, tornando-se, assim, íntimo do poder e da família imperial. Ora, como poderia Sêneca ter escrito este tratado, de tom epicurista e apolítico, exatamente no momento em que ele prórprio se entrega totalmente à vida ativa? Esta é a principal dificuldade dos partidários da data de 49.
Em 62, pelo contrário, Sêneca está se retirando da vida pública. Afasta-se da corte, vive uma vida retirada e dedica-se aos estudos e à composição de sua maior obra, as Epístolas a Lucílio. Tal situação é compatível com o tom exortativo de Sobre a Brevidade da Vida. No entanto, a tese de 62 carece de maior fundamentação técnica, baseando-se apenas nas circunstâncias exteriores ao texto.
Recentemente, Mirian Griffin, numa tese de Oxford, propôs uma terceira data e um terceiro contexto para o Sobre a Brevidade da Vida. Sabemos que o ano de 55 houve uma grave crise entre Nero e sua mãe Agripina. Palas, o protegido dela, caiu em desgraça, e Britânico, o legítico herdeiro do trono, foi assassinado. Após a reconciliação, promovida por Sêneca e Burrus, vários cargos públicos foram postos à disposição de Sêneca e Agripina, para que fossem distribuídos entre seus amigos (Tácito, ib 13, 13-22). Um deles era precisamente a praefectura annonae, e foi provavelmente nesta ocasião que Sêneca escreveu a seu sogro, Pompeius Paulinus, para que desistisse do cargo e se dedicasse à filosofia. E também para que se pudesse nomear um novo praefectus - coisa que o tratado obviamente não menciona.
A data do casamento de Sêneca com Pompeia Paulina, filha de Paulinus, é também um elemento da circunstância da composição do tratado. Para Bourgery, que estudou a questão, a data mais provável do casamento é em torno de 56, época em que foi composto o tratado. Como se vê, tudo leva a crer que Paulinus exerceu a praefectura nanonae até 55, e que Sêneca lhe tenha escrito o Sobre a Brevidade da Vida no mesmo ano, por ocasião de suas núpcias com Pompeia Paulina.
Quanto ao tipo de discurso, Sobre a Brevidade da Vida pertence ao gênero exhortatio ad philosophiam (exortação à filosofia), que já tinha sido praticado antes por Aristóteles, Posidônio e Cícero, os quais toma por modelos. Neste, como em qualquer outro protréptico, trata-se de convencer o interlocutor de que a melhor ocupação possível para o homem é o estudo da filosofia. Assim, ao dirigir-se a Paulinus, que não tem qualquer instrução filosófica, Sêneca irá usar argumentos simples, sem recurso ao vocabulário técnico do estoicismo. Por se tratar de um texto introdutório, cujo único objetivo é convencer Paulinus a iniciar-se no estudo de filosofia, Sêneca não desenvolverá no Sobre a Brevidade da Vida as complexas teorias estóicas dos incorporais, do tempo e da vida contemplativa, mas apenas tratará de convencê-lo a abandonar as pesadas responsabilidades de um alto cargo na burocracia imperial e a dedicar-se à filosofia.
SÊNECA. Sobre a Brevidade da Vida. Tradução, introdução e notas de Willian Li. São Paulo; Nova Alexandria, 1993. p. 19-22
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