Por Michael Erler
A naturalização da filosofia em Roma foi facilitada não por último pelo seu aspecto prático, que, dessa maneira, foi responsável por uma etapa importante da transmissão do pensamento grego às épocas posteriores da história intlectual européia. As obras de Cícero desempenharam nesse processo um papel tão importante como os escritos de Sêneca, ou ainda as meditações de Marco Aurélio, cujo título já sinaliza o aspecto prático. Pois não foram os clássicos Platão ou Aristóteles os primeiros a serem acolhidos, mas a filosofia do helenismo junto com o pitagorismo.
Co-reponsável por isso certamente foi aquela máxima básca que, em cada recepção de material cultural estanho, perguntava pela utilidade do mesmo. Quando, por exemplo, o poeta Horácio ocupava-se com filosofia, ele esperava disso auxílio e felicidade para a vida (ep. 1,1,10s). Enquanto, em torno do meado do século I, estavam em primeiro plano sobretudo o epicurismo e o ceticismo, por volta do fim deste século até o segundo quem dominava era o estoicismo. Percebeu-se que a filosofia oferecia o equipamento intelectual para formular teorias, articular diferenças de opinião sobre religião, ética ou filosofia política e refletir sobre o próprio mundo de experiências. A filosofia servia à interpretação e justificação da realidade. No contexto romano, a filosofia deveria ajudar a fundamentar o que estava acreditado pela tradição e pelo prestígio dos antepassados, deveria justificar o compromisso representado pela tradição. Filosofar em língua grega, mas no quadro das convenções romanas (Graecis verbis, Latinis moribus philosophari): mencionam-se, desta forma, as condições conjunturais mais importantes em que se deu a recepção da filosofia grega em Roma. Neste processo, era decisivo, em primeiro lugar, familiarizar o público com as posições das escolas mais importantes.
Essa tarefa foi assumida por Cícero. Em suas descrições, ele não se deixa guiar apenas pela força dos argumentos filosóficos, mas continua levando em conta o entorno romano com os seus valores (mos maiorum) e suas tradições. A postura de Cícero, marcada pelo ceticismo acadêmico, permita-lhe oferecer a seus leitores um panorama tal sobre a filosofia grega que dava ao leitor a oportunidade de formar um juízo próprio sobre as posições fundamentais das diferentes escolas; pois ele aborda algumas questões de importância central e faz com que, no diálogo de suas figuras, diversas propostas de soluções sejam ponderadas. No entanto, ele não visa a uma mera exposição do ensino grego. "Entre ceticismo e confissão" ele aponta para os próprios pontos de vista. Ele esmera em dar a entender ao leitor umideal que já tem diante dos olhos desde a sua juventude: a concepção da vinculação entre política, filosofia e retórica, que lembra Platão.
Ao passo que Cícero vincula à filosofia uma tarefa formativa, outros autores romanos, como o poeta epicureu Lucrécio e sobretudo os filósofos com tendência estóica Sêneca e Marco Aurélio, valiam-se particularmente do aspecto da filosofia helenista relativo à vida prática, interligando elementos estóicos, epicureus e também platônicos. Eles propagavam a filosofia como arte do viver (ars vitae) (Sêneca, ep. 73,12) e ofereciam regras práticas de vida. Segundo a sua opinião, a ocupação com filosofia deve auxiliar na formação daquela disposição do ser humano que possibilita uma vida feliz. Já vimos que as escolas helenistas ofereciam receitas e técnicas correspondentes para aplicação na vida. Por isso, não deve causar admiração quando filósofos como Sêneca ou o imperador filósofo Marco Aurélio lançavam mão sobretudo de técnicas desse tipo e as usavam como critério também na elaboração literária de suas obras. A circunstância de que possuímos apenas tratados de teor prático-moral dos filósofos romanos no início do período imperial não deveria nos levar a negar qualquer ímpeto teórico à filosofia dessa época. Entretanto, pelo visto, esse aspecto prático foi o que se deparou com um interesse especial. A forma literária de obras como as cartas e os ensaios de Sêneca ou as reflexões de Marco Aurélio de fato chama para um tipo de leitura que torna as obras um elemento de ensino propagado pelo seu autor. A constituição da forma, a função e o teor filosófico convergem e fazem com que a filosofia torne-se prática. Isto corresponde à intenção da filosofia de seus autores, entendida como auxílio para a vida.
Sêneca, que sempre declarou a virtude como idéia norteadora e critério, vê na filosofia um processo que leva da superação das paixões mais baixas até a experiemntação da virtude (virtus) da realidade, quando as paixões tiverem sido domesticadas ou postas de lado (ep. 75,9). Almeja-se submeter desejos, ações e objetivos próprios à razão. É controvertido se ele teve êxito completo nisso. No caso dele, de qualquer modo, realmente pode ser constatada uma certa "discrepância entre ideal e a realidade". No entanto, deve ser sustentado em seu favor que ele estava seriamente empenhado em fazer filosofia. Ele tampouco reivindicou ter atingido o ideal do sábio estóico, mas sempre acentuou a imperfeição do empenho humano. O autor Sêneca vê sua tarefa em apoiar a vontade de aperfeiçoamento do leitor.
Justamente isto é o que quer promover também o imperador Marco Aurélio: "Torna-te como o filósofo quer que sejas". Assim como Sêneca, também em Marco Aurélio o método filosófico por ele propagado e a sua intenção constituem uma chave para a interpretação adequada de sua obra. As suas Meditações serviam concretamente como auxílio meditativo para o próprio autor e pretendem ser úteis também para outros leitores na terapia de suas almas. Assim como os escritos de Sêneca, também as meditações de Marco não querem constituir um sistema filosófico, mas servir à interiorização ou ao "tingimento" com as verdades filosóficas por meio da aplicação de recursos retóricos. As obras literárias de Sêneca e de Marco Aurélio são, assim, elementos da filosofia propagada e praticada por seus autores.
ERLER, Michael & GRAESER, Andreas, orgs. Filósofos da Antiguidade 2: Do Helenismo à Antiguidade Tardia. Univesidade do Vale do Rio dos Sinos: São Leopoldo, 2003. p. 17-19
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