Dion Crisóstomo

A tese de Demétrio, segundo a qual só as adversidades revelam a verdadeira têmpera moral de um homem e que se deve considerar infeliz não quem é provado pelas desventuras, mas quem está amparado delas, encontram uma esplêndida confirmação na vida de Díon Crisóstomo.

Nascido numa família de elevado nível social, na cidade de Prusa, na Bitínia 1, Díon Crisóstomo formou-se primeiro nos estudos literários e exercitou-se como retórico (como "sofista", para usar a terminologia em voga naquela epoca) e escreveu até mesmo uma obra contra os filósofos em geral, e uma contra Musônio em particular. Em Roma, desenvolveu familiaridade com homens de alta posição e, por causa dos estreitos laços que estabeleceu com Flávio Sabino, foi condenado ao exílio, quando aquele tornou-se suspeito de conspirar contra o imperador Domiciano.



Banido da Bitínia e da Itália, constrangido a peregrinar por países inóspitos e a ganhar a própria vida com os trabalhos mais humildes, privado de tudo o que tinha preenchido e alimentado a sua vida passada, soube encontrar a sua vocação de fundo justamente por causa da solicitação dessas circunstâncias adversas, e assim tornou-se "filósofo". Ele descobriu desse modo a validez daquela filosofia que punha, contra a comum opinião, o mais autêntico bem em ser privado de tudo e em levar uma vida de "primitivo".2

Eis como o próprio Díon Crisóstomo, numa página exemplar, descreve a sua conversão à filosofia cínica:

"Os homens que me encontravam [i. é., no meu peregrinar de lugar em lugar] olhavam-me e julgavam-me, alguns como vagabundo, outros como mendicante, outros, ao invés, como filósofo. Daí, pouco a pouco, veio-me o nome de filósofo, sem que eu o quisesse ou me vangloriasse dele. Muitos dos assim chamados filósofos, de fato, proclamam-se a si mesmo tais, como os arautos das Olimpíadas proclamam os verdadeiros vencedores: quanto a mim, ao invés, tendo sido os outros a darem-me esse nome, não podia opor-me todo o tempo a todos. Antes, aconteceu-me receber um certo benefício daquele nome. Com efeito, muitos vinham a mim e me perguntavam o que eu considerava ser o bem e o mal. Consequentemente, fui constrangido a meditar sobre essas coisas para poder responder aos que me punham aquelas questões. Ademais, a falar sobre os deveres dos homens e sobre o que, a meu ver, lhes é benéfico. Formei, então, a convicção de que todos, por assim dizer, eram carentes de reflexão e não faziam o que devia fazer nem consideravam como podiam libertar-se dos males que os aflingiam pela grande ignorancia e pela confusão, e como podiam viver uma vida mais conveniente e mais virtuosa, sendo todos agitados e arrastados ao mesmo lugar e às mesmas coisas, ou seja, para as riquezas, a reputação e certos prazeres corpóreos, sem que nenhum deles fosse capaz de libertar-se dessas coisas e libertar a própria alma, assim como as coisas que caem num vórtice, giram e são arrastadas em círculo sem poder libertar-se dele."3

Os escritos de Díon Crisóstomo desse período de exílio repetem, sem muita originalidade, embora não sem garbo e vigor, os fundamentos da doutrina cética, e, nesses, a figura de Diógenes predomina de maneira incontrastada. Desses escritos exaltam de modo particular o poder libertador do discurso de Diógenes, reafirmam a validez da tábua cínica dos valores, voltam a defender certos aspectos da cínica anaideia e sublimam marcadamente a importância da luta contra o prazer.4

Eis um significativo trecho do Discurso Sobre a Virtude:

"Alguém perguntou a Diógenes se também ele tinha vindo [ao istmo de Corinto] para ver os jogos e ele respondeu: 'Não, mas para tomar parte neles.' Aquele se pôs a rir e perguntou quais eram os seus adversários. E Diógenes, olhando-0 de baixo para cima, como costumava fazer, disse: 'Os mais perigosos e os mais difíceis de vencer e aos quais nenhum dos gregos sabe resistir; não são, contudo, adversários que correm, lutam, saltam, lutam, lançam o disco ou o dardo, mas o que corrigem os homens.' 'E quem são?', perguntou. 'São as fadigas', respondeu, 'as mais rudes e não superáveis pelos homens saciados de comida e cheios de fumaça do orgulho, que passam todos os seus dias a comer e as suas noites a roncar, mas que são abatidos por homens sutis e magros, cujos ventres são mais sutis que os das vespas. Ou crês que esses grandes ventres sirvam para alguma coisa, esses indivíduos aos quais os que têm bom senso deveriam cavar ao redor, purificar e depois expulsar, ou antes, imolar, cortar em pedaços e depois comer, como se faz com a carne dos grandes peixes, que cozinhamos no sal e na água do mar para dissolver a gordura, como fazem entre nós no Ponto com a banha dos porcos os que querem ungir-se. De fato, creio que eles têm menos alma do que os porcos. Ao invés, o homem probo considera que as fadigas são os seus maiores adversários e com eles ambiciona bater-se noite e dia, não para obter um ramo de macieira, como as cabras, nem um ramo de oliveira ou de pinho [com os quais se coroam os vencedores dos jogos Olímpicos e Ístmicos], mas para obter a felicidade e a virtude para toda a vida [...]' "5

Esses adversários, esclarece Diógenes, devem ser atacados com extrema decisão, como se faz com o fogo, que , se agredido sem hesitação, pode ser apagado, do contrário se alastra.6

Mas o pior adversário, também para Díon Crisóstomo assim como para os antigos cínicos, é o prazer, o qual não usa a força, mas a astúcia e seduz com funestos fármacos, como fez a maga Circe, da qual fala Homero, a qual atraiu desse modo os companheiros de Ulisses, para depois tranformá-los em porcos e em animais selvagens. O prazer nos ameaça de todos os modos possíveis, até mesmo durante o sono, mediante sonhos insidiosos. Para defender-se do prazer é necessário afastar-se dele o máximo possível e relacionar-se com ele o mínimo o necessário. Por isso conclui Díon Crisóstomo:

"[...] Um homem verdadeiramente forte é, de fato, tal, quando é capaz de afastar-se o máximo possível dos prazeres: com efeito, não é possível frequentar o prazer e fazer dele experiência por um período de tempo sem ser arruinado por ele. Tão logo se impõe e vence a alma com os seus filtros, logo se seguem os efeitos produzidos pela maga Circe."7

À morte de Domiciano, Díon Crisóstomo voltou a Roma, e com o fim do exílio terminou também a sua "vida cínica"; a sua própria visão da filosofia se ampliou, subsumindo numerosos conceitos estóicos e até mesmo algumas sugestões platônicas.

Ressente-se ainda de fortes influxos cínicos o texto que leva o título de Eubóico, no qual se conta sobre uma família de caçadores, a qual, longe da cidade, em contato com a natureza, vive serenamente, satisfazendo apenas as necessidades mais elementares e essenciais, sem desejos do supérfulo e sem vãs ambições, e que realiza desse modo, embora sem saber, a vida ideal. Díon Crisóstomo não tem dúvidas de que o viver em pobreza e não em meio à riqueza represente o "viver conforme a natureza" (kata physin)8. Com base nessa concepção de caráter tipicamente moral, ele propõe a solução do problema social da pobreza dos estratos inferiores, que se tornava cada vez mais preocupante nas grandes cidades: seria preciso fazer sair da cidade os que ele define como os "pobres respeitáveis", ou seja, os pobres que levam uma vida honesta, levá-los a viver nos campos e ali ensinar-lhes a produzir os meios de sustento de modo mais natural.9 É fora de dúvida que Díon Crisóstomo pretendia apresentar esse programa não só com escopo teórico, mas justamenhte como solução concreta dos graves problemas sociais do momento histórico em que vivia.

Outro grupo de escritos de caráter político compostos no período posterior ao exílio reflete ainda idéias cínicas, introduzidas, porém, na mais ampla perspectiva estóica da monarquia universal da qual Zeus é rei.10 O governo ideal é, para Díon Crisóstomo, o monárquico, e o monarca ideal é o melhor dos homens, ou seja, o homem mais virtuoso. Lemos na Oração IV, na qual os protagonistas são Diógenes (porta-voz de Díon Crisóstomo) e Alexandre (que, provavelmente, representa, de algum modo, o imperador Trajano, a quem o discurso é dirigido):

"[...] Então Alexandre perguntou a Diógenes: 'De que modo se deve exercer a arte régia da melhor maneira?' Diógenes olhou-0 severamente de baixo para cima e respondeu: 'Não se pode exercer mal a arte régia mais do que não se pode ser um mal homem honesto! De fato, o rei é o melhor dos homens, o mais corajoso, o mais justo, o mais humano, e é invencível com relação a qualquer fadiga e com relação a qualquer desejo.' "11

O rei deve ser um "pastor de povos", segundo o célebre dito de Homero12, e deve ser o imitador do maior dos reis, vale dizer, o rei que governa o Universo inteiro, Zeus. Lemos, por exemplo, na Oração I:

"[...] Dentre os reis, dado que, como creio, eles recebem de Zeus o seu poder e a sua função, aquele que, olhando para Zeus, ordena e governa com justiça e com bondade em conformidade com as leis e o querer de Zeus, tem uma boa sorte e um fim propício."13

E pouco antes ele explica:

"Os mortais e os que governam as coisas dos homens devem sempre imitar o Rei primeiro e supremo ao desincubir-se das suas responsabilidades, regendo-se por ele, enquanto possível, e assimilando (aphomoioyntas) o seu modo de agir."14

Tendem, ao invés, decididamente para doutrinas do Pórtico a Oração XXXVI (com o título Boristênico), que contém, entre outras coisas, uma verdadeira cosmologia estóica, e a Oração XII (com o título Olímpico), que demonstra que a idéia de Deus é inata em todos os homens, sejam gregos ou bárbaros.

Também em Díon Crisóstomo, como no neo-estoicismo paralelo, aparece a idéia do parentesco e da ligação natural (syggeneia) que une os homens aos Deuses e, portanto, a idéia da fraternidade de todos os homens.15 E como no paralelo movimento médio-platônico, em Díon Crisóstomo aparece não só a idéia já acima indicada de que os homens devem imitar a Deus e assimilar-se a ele16, mas até mesmo a doutrina de que o Demônio do homem é o seu nous, o seu intelecto (note-se: não a simples psyké, mas o nous!):

"Os demônios bons e maus, que levam a desgraça e a sorte, não estão fora do homem: o intelecto que é próprio de cada homem (o de idios ekastoy nous) é possuído pelo Demônio do homem: o Demônio de um homem sábio e bom é bom, mau o de um homem mau, e assim, livre o de um homem livre, escravo o de um escravo, régio o de um homem régio e magnânimo, miserável o de um miserável e vil."17



Notas:

1. Díon Crisóstomo nasceu, provavelmenhte, na última década da primeira metade do século I d.C. O sobrenome Crisóstomo, que quer dizer "Boca de Ouro", derivou-lhe da habilidade no falar e da sua persuasiva eloquencia. Seu exílio durou de 82 d.C. até o assassinato de Domiciano, ou seja, até 96 d.C. Teve boas relações com Trajano (98-117), em cuja presença pronunciou alguns dos seus discursos. De Díon chegou-nos um complexo de oitenta orações, nas quais predomina a forma literária da diatribe. Fundamental é o trabalho de H. von Arnim, Leben und Werke des Dio von Prusa, Berlim, 1898, o qual cuidou também de uma excelente edição crítica das obras: Dionis Prusaniensis quem vocant Chrysostomum quae exstant omnia, edidit apparatu critico instruxit J. de Armim, 2 vols., Berlim 1883-1886.

2. Cf. Díon, Orações XIII, passim. Que o próprio Diógenes se tenha tornado filósofo porque exilado e privado de tudo era uma convicção comumente aceita; cf., por exemplo, Musônio Rufo, Diatribes, IX.

3. Díon, Orações, XIII, 11-13

4. Cf. sobretudo as Orações, VI, VIII, IX e X.

5. Díon, Orações, VIII, 11-16

6. Cf. Díon, Orações, VIII, 19

7. Díon, Orações, VIII, 24

8. Díon, Orações, VII, 81

9. Díon, Orações, VII, 107s.

10. Cf. as quatro primeiras Orações, passim.

11. Díon, Orações, IV, 24

12. Cf. Ilíada, I, V, 263

13. Díon, Orações, I, 45

14. Díon, Orações, I, 37

15. Cf. Díon, Orações, XII, 61

16. Ver a última passagem reportada acima.

17. Díon, Orações, IV, 79



REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga IV: As Escolas da Era Imperial. Edições Loyola. p. 192-197


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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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