A lei geral da oikeíosis implicava a necessidade de reconhecer como positivo tudo o que conservava e incrementava o ser, mesmo no nível físico e biológico, dado que a conservação de si mesmo é um instinto de todos os seres, e dado que esse instinto é fonte das avaliações. E assim, não só para os animais, mas também para os homens devia-se reconhecer como positivo tudo o que é conforme à natureza física e, assim, garante, conserva e incrementa a vida, como a saúde, a força, o vigor do corpo e dos membros, e assim por diante. Esse positivo segundo a natureza, os estóicos o chamaram de valor ou estima (áxia), enquanto o oposto negativo chamaram-no de falta de valor e de estima (ápaxía).
Portanto, os intermédios situados entre os bens e os males deixam de ser totalmente indiferentes; ou melhor, mesmo permanecendo moralmente indiferentes, tornam-se, do ponto de vista físico, valores e desvalores. Relata Cícero:
"Todas as outras coisas que estão no meio, entre o verdadeiro bem e o verdadeiro mal, não são nem bens nem males; todavia, algumas são conformes à natureza, outras não, e também aqui existem graus intermediários. As coisas conformes à natureza devem ser rejeitadas e desprezadas; as intermédias [entenda-se: intermédias entre as que são conformes à natureza e as que não o são, não intermédias entre bens e males] são indiferentes."1
Estobeu confirma:
"As coisas conformes à natureza têm valor ou estima, as contrárias têm desvalor ou desestima. Valor ou estima, em sentido absoluto, têm as coisas que se conformam com o viver segundo a natureza; em sentido relativo, as que são em si indiferentes, se podem conformar-se com a vida segundo a natureza."2
Portanto, as coisas situadas entre bens e males morais são, algumas, valores, outras, desvalores; algumas são valores em maior ou menor grau e outras são desvalores em maior ou menor grau. Segue-se daí, consequentemente, que para a nossa natureza animal, as primeiras serão objeto de preferência, as segundas, ao invés, de aversão. Nasce assim uma segunda distinção, estritamente dependente da primeira, entre indiferentes preferíveis (proegmena) e não preferíveis (apoproegmena), perfeitamente ilustrada pelo seguinte testemunho:
"Das coisas que têm valor, algumas têm muito, outras pouco. De modo semelhante, das coisas que têm desvalor, algumas têm muito, outras pouco. Ora, as que têm muito valor chamam-se preferíveis (ou promovidas), as que têm muito desvalor são chamadas rejeitadas (ou repelidas). Quando se diz preferido, entende-se algo por si indiferente, que escolhemos por razão de preferência. O mesmo vale para o rejeitado, e os exemplos, segundo o princípio de analogia, são os mesmos. Nenhum dos bens [entenda-se: dos bens em sentido estrito, isto é, os bens morais e espirituais] é preferido (ou promovido), pois os bens têm já, por si mesmos, o máximo valor e estima; enquanto o preferido (ou promovido), encontra-se num lugar secundário e com um valor e estima menores, aproxima-se de algum modo da natureza dos bens. De resto, também a corte, o rei, não são preferidos (ou promovidos), isto é, dignitários, mas sim os que vêm depois dele." 3
E outras fontes posteriores determinam melhor esse ponto, esclarecendo-o com exemplos, como se segue:
Exemplos de coisas preferidas ou promovidas
1. no campo espiritual: a inteligência, a arte, o bom aproveitamento, etc;
2. no campo físico: a vida, a saúde, a força física, a boa constituição, a integridade dos membros, a beleza;
3. no mundo externo: a riqueza, a fama, a nobreza, etc.
Exemplos de coisas rejeitadas ou repelidas
1. no campo espiritual: a estupidez, a rudeza, etc;
2. no campo físico: a morte, a enfermidade, a fraqueza, a má constituição, a mutilação, a fealdade, etc.
3. no mundo externo: a pobreza, a humildade, a vulgaridade, etc. 4
Podemos resumir o que dissemos do seguinte modo:
* São bens verdadeiros só os bens morais, isto é, os que conservam e incrementam a racionalidade e o lógos, e vice-versa, são males só os males morais, isto é, os que diminuem a razão e o lógos.
* Esses bens são valores em sentido absoluto, e o mesmo se diga dos males morais, que são desvalores em sentido absoluto.
* Os indiferentes, se estão todos no mesmo plano do ponto de vista moral, não estão no memso plano do ponto de vista físico e biológico, na medida em que incrementem ou prejudiquem a vida ou não façam nem uma coisa nem outra.
* Existirão coisas que, mesmo sendo moralmente indiferentes, todavia serão, do ponto de vista físico e biológico, valores e desvalores, ou serão totalmente neutras.
* As coisas que têm valor físico são preferidas, as que têm desvalor são rejeitadas, as neutras são totalmente indiferentes.
* Os bens morais são valores absolutos e, por isso, diante deles não tem sentido a qualificação de preferidos, justamente porque o seu caráter absoluto os situa acima de qualquer relação com outros.
Essas distinções correspondiam não só a uma exigência de atenuar a maneira realista a excessivamente clara dicotomia entre bens, males e indiferentes, por si mesma paradoxal, mas encontravam no pressuposto do sistema uma justificação até mesmo maior do que a da referida dicotomia, pelas razões acima apontadas. Por isso, compreende-se que a tentativa de Ariston e Hérilo de sustentar a absoluta adiaphoría ou indiferença das coisas que não são nem bens nem males, tenha encontrado nítida oposição em Crisipo, que defendeu a posição de Zenão e consagrou-a de maneira definitiva.5
Notas:
1. Cícero, Acad. post., I, 10, 36 (= von Arnim, S.V.F., I, fr. 191)
2. Estobeu, Anthol., II,83, 10 e 84; Diógenes Laércio, VII, 105 (=von Arnim, S.V.F., III, frs. 124-126)
3. Estobeu, Anthol., II, 84, 21 (= von Arnim, S.V.F., I, fr. 192)
4. Diógenes Laércio, VII, 106 (= von Arnim, S.V.F., III, fr. 127)
5. Cf. von Arnim, S.V.F., III, fr. 117ss.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga III: Os Sistemas da Era Helenística. São Paulo: Loyola, 1994. p. 336-338
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Portanto, os intermédios situados entre os bens e os males deixam de ser totalmente indiferentes; ou melhor, mesmo permanecendo moralmente indiferentes, tornam-se, do ponto de vista físico, valores e desvalores. Relata Cícero:
"Todas as outras coisas que estão no meio, entre o verdadeiro bem e o verdadeiro mal, não são nem bens nem males; todavia, algumas são conformes à natureza, outras não, e também aqui existem graus intermediários. As coisas conformes à natureza devem ser rejeitadas e desprezadas; as intermédias [entenda-se: intermédias entre as que são conformes à natureza e as que não o são, não intermédias entre bens e males] são indiferentes."1
Estobeu confirma:
"As coisas conformes à natureza têm valor ou estima, as contrárias têm desvalor ou desestima. Valor ou estima, em sentido absoluto, têm as coisas que se conformam com o viver segundo a natureza; em sentido relativo, as que são em si indiferentes, se podem conformar-se com a vida segundo a natureza."2
Portanto, as coisas situadas entre bens e males morais são, algumas, valores, outras, desvalores; algumas são valores em maior ou menor grau e outras são desvalores em maior ou menor grau. Segue-se daí, consequentemente, que para a nossa natureza animal, as primeiras serão objeto de preferência, as segundas, ao invés, de aversão. Nasce assim uma segunda distinção, estritamente dependente da primeira, entre indiferentes preferíveis (proegmena) e não preferíveis (apoproegmena), perfeitamente ilustrada pelo seguinte testemunho:
"Das coisas que têm valor, algumas têm muito, outras pouco. De modo semelhante, das coisas que têm desvalor, algumas têm muito, outras pouco. Ora, as que têm muito valor chamam-se preferíveis (ou promovidas), as que têm muito desvalor são chamadas rejeitadas (ou repelidas). Quando se diz preferido, entende-se algo por si indiferente, que escolhemos por razão de preferência. O mesmo vale para o rejeitado, e os exemplos, segundo o princípio de analogia, são os mesmos. Nenhum dos bens [entenda-se: dos bens em sentido estrito, isto é, os bens morais e espirituais] é preferido (ou promovido), pois os bens têm já, por si mesmos, o máximo valor e estima; enquanto o preferido (ou promovido), encontra-se num lugar secundário e com um valor e estima menores, aproxima-se de algum modo da natureza dos bens. De resto, também a corte, o rei, não são preferidos (ou promovidos), isto é, dignitários, mas sim os que vêm depois dele." 3
E outras fontes posteriores determinam melhor esse ponto, esclarecendo-o com exemplos, como se segue:
Exemplos de coisas preferidas ou promovidas
1. no campo espiritual: a inteligência, a arte, o bom aproveitamento, etc;
2. no campo físico: a vida, a saúde, a força física, a boa constituição, a integridade dos membros, a beleza;
3. no mundo externo: a riqueza, a fama, a nobreza, etc.
Exemplos de coisas rejeitadas ou repelidas
1. no campo espiritual: a estupidez, a rudeza, etc;
2. no campo físico: a morte, a enfermidade, a fraqueza, a má constituição, a mutilação, a fealdade, etc.
3. no mundo externo: a pobreza, a humildade, a vulgaridade, etc. 4
Podemos resumir o que dissemos do seguinte modo:
* São bens verdadeiros só os bens morais, isto é, os que conservam e incrementam a racionalidade e o lógos, e vice-versa, são males só os males morais, isto é, os que diminuem a razão e o lógos.
* Esses bens são valores em sentido absoluto, e o mesmo se diga dos males morais, que são desvalores em sentido absoluto.
* Os indiferentes, se estão todos no mesmo plano do ponto de vista moral, não estão no memso plano do ponto de vista físico e biológico, na medida em que incrementem ou prejudiquem a vida ou não façam nem uma coisa nem outra.
* Existirão coisas que, mesmo sendo moralmente indiferentes, todavia serão, do ponto de vista físico e biológico, valores e desvalores, ou serão totalmente neutras.
* As coisas que têm valor físico são preferidas, as que têm desvalor são rejeitadas, as neutras são totalmente indiferentes.
* Os bens morais são valores absolutos e, por isso, diante deles não tem sentido a qualificação de preferidos, justamente porque o seu caráter absoluto os situa acima de qualquer relação com outros.
Essas distinções correspondiam não só a uma exigência de atenuar a maneira realista a excessivamente clara dicotomia entre bens, males e indiferentes, por si mesma paradoxal, mas encontravam no pressuposto do sistema uma justificação até mesmo maior do que a da referida dicotomia, pelas razões acima apontadas. Por isso, compreende-se que a tentativa de Ariston e Hérilo de sustentar a absoluta adiaphoría ou indiferença das coisas que não são nem bens nem males, tenha encontrado nítida oposição em Crisipo, que defendeu a posição de Zenão e consagrou-a de maneira definitiva.5
Notas:
1. Cícero, Acad. post., I, 10, 36 (= von Arnim, S.V.F., I, fr. 191)
2. Estobeu, Anthol., II,83, 10 e 84; Diógenes Laércio, VII, 105 (=von Arnim, S.V.F., III, frs. 124-126)
3. Estobeu, Anthol., II, 84, 21 (= von Arnim, S.V.F., I, fr. 192)
4. Diógenes Laércio, VII, 106 (= von Arnim, S.V.F., III, fr. 127)
5. Cf. von Arnim, S.V.F., III, fr. 117ss.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga III: Os Sistemas da Era Helenística. São Paulo: Loyola, 1994. p. 336-338
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