Os cínicos não se abalavam diante das críticas despejadas sobre eles de todos os lados: declaravam-se, inequivocadamente, filósofos e desafiavam todos os outros quanto ao título. Sua concepção de filosofia, porém, revela-se fortemente idiossincrática, uma vez que eles a definiam pelo ato de "desfigurar".
Desfigurar a Moeda
Conforme é representado pela tradição, o objetivo de Diógenes era demonstrar pelo seu próprio exemplo a superioridade da natureza em relação ao costume, e ele passou toda a sua vida tentando "desfigurar" os valores falsos da cultura dominante. Em todas as áreas da atividade humana, essa "desfiguração" levou os cínicos a adotar posições escandalosas.
Tornando um exemplo da política: os cínicos aparecem numa época em que, embora a pólis tradicional estivesse começando a ser abalada em suas fundações pelas conquistas do jovem Alexandre, muitos ainda não estavam prontos para abandonar seus papéis na vida civil e política. E, no entanto, Diógenes pregava o "cosmopolitismo", declarando-se "sem cidade" (a-pólis), "sem casa" (a-oikos)1, e "cidadão do universo" (kosmopolites)2. Até agora, esse cosmopolitismo tem sido considerado essencialmente negativo - uma rejeição de todos os estados existentes -, mas a contribuição de Moles para o presente livro abre novamente o debate. Seja como for, Diógenes insistia para que as pessoas se abstivessem de todo engajamento político que, como obrigações familiares e sociais, pudessem constituir um obstáculo à liberdade individual.
A "desfiguração" cínica era igualmente radical em questões religiosas.3 Em primeiro lugar, eles viraram a hierarquia tradicional dos seres de cabeça para baixo: a série animal-homem-deus foi transformada em homem-animal-deus. Para o homem, como um ser de desejo e angústia, animal e deus constituíam, respectivamente, o modelo concreto e teórico da auto-suficiência e da indiferença e, em consequência, da felicidade. Isso não significa, porém, que os cínicos fossem pios. Eles não tinham qualquer interesse por questões religiosas e consideravam que deus fosse um mero pontode referência teórico. Em geral, pode-se dizer que a sua atitude em relação à religião era cética ou agnóstica: eles preferiam não fazer julgamentos quanto a questões que transcendiam o seu entendimento. Embora vissem o homem como estando diante de um mundo irracional, constrangido a se dobrar aos caprichos da fortuna, recusavam-se a viver em medo constante dos deuses e dos castigos do Hades. Esta, além do mais, era a razão de invejarem os animais, que eles consideravam felizes por não terem nenhuma idéia de um deus que pode recompensar e punir. Tais pontos de vista, combinados a críticas contundentes do antropomorfismo, dos Mistérios, da oração, da interpretação dos sonhos, das purificações rituais e de outras instituições religiosas, iam diretamente contra a ideologia religiosa tradicional.
Diógenes também "desfigurava" a filosofia, não só por sua crítica a filósofos contemporâneos como Platão, Euclides ou Aristipo e por sua rejeição a todos os sistemas, preferindo demonstrar suas crenças por meio de suas ações, mas também por afirmar que a filosofia não esá ao nosso alcance e que tudo o que podemos fazer é fingir.4 Como era próprio de Diógenes renegar em alto e bom som a sua "desfiguração"! Assim como Sócrates já insistira, a filosofia não deveria mais ser reservada a uma elite social ou intelectual; todos poderiam filosofar. Desse modo, não é surpreendente que, no Império Romano, o cinismo tenha se tornado a filosofia popular da antiguidade.
Armado com a metáfora da "desfiguração" que ele próprio havia escolhido, Diógenes estava preparado para todo ato de "despudor" e aceitava o seu papel como o daquele que escandaliza a sociedade.
Escolha Ética Levando à Filosofia Prática
Os cínicos, seguindo os passos de Sócrates, adotaram uma orientação fortemente ética. Mesmo que nos mantenhamos apropriadamente céticos quanto à caracterização deles feita por Diógenes Laércio (de acordo com a qual eles rejeitavam a lógica e o topoi físicos da filosofia)5, continua sendo verdadeiro que toda a sua atitude filosófica era inseparável do campo da ética. Para os cínicos, o que improtava era viver para ser feliz. Quando perguntaram a Diógenes qual era o lucro que ele tirava da filosofia, ele respondeu: "Este, se nada mais - estar preparado para todo tipo de sorte."6ou "Ser rico mesmo sem um óbolo sequer em meu nome"7. O objeto do cinismo é, entre outras coisas, demonstrar que somos de tal forma constituídos pela natureza que a felicidade é possível sob as condições mais adversas. Quem quer que o pratique vive uma vida próxima da natureza. Os cínicos romperam com o modelo intelectualista de filosofia e privilegiaram a experiência existencial do sábio.
Para alcançar a felicidade, Diógenes e seus sucessores insistiram na importancia de atos em vez de palavras. Ironicamente, em vista de suas extensas atividades literárias, seu lema poderia ter sido: "bem viver em vez de bem falar". Não devemos nos surpreender, portanto, se as formas de discurso pelas quais eles ficaram conhecidas têm pouca semelhança com o discurso filosófico tradicional. O discurso dos cínicos era cáustico e agressivo; eles encurralavam o interlocutor até ele ser forçado a questionar a si próprio. É por isso que jogos de palavras, sarcasmo ácido e observações implacáveis são características de seus próprios métodos e do modo comq ue foram representados por outros.
Notas:
1. Cf. D. L. 6, 38 = V B 263 G.
2. Cf. D. L. 6, 63 = V B 355 G.
3. Ver a contribuição de GOULET-CAZÉ neste livro
4. D. L. 6, 64 = V B 364 G.
5. Cf GOULET-CAZÉ, Le cynism est-il une philosopie?., 291-92. As conclusões da demosntração global realizada por P. HADOT, Les divisions des parties de la philosophie dans l' antiquité, Museum Helveticu, 15, 1979, 201-33, podem ser aplicadas a D. L. 6, 103. Estamos, portanto, justificados em supor que foi após o fato que alguns estóicos - talvez mais especificamente Apolodoro de Selêucia - deram à concepção que os cínicos tinham da filosofia, que era certamente unitária, uma formulação que trouxe à cena as três partes da filosofia que eles próprios distinguiram.
6. D. L. 6, 63 = V B 360 G.
7. Gnomologium Vaticanum 743, n. 182, p. 74 STERNBACH = V B 361 G.
Bibliografia:
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. (Org.). Os Cínicos: O Movimento Cínico na Antiguidade e o Seu Legado. Edições Loyola: São Paulo, 2007. p. 34-36
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Conforme é representado pela tradição, o objetivo de Diógenes era demonstrar pelo seu próprio exemplo a superioridade da natureza em relação ao costume, e ele passou toda a sua vida tentando "desfigurar" os valores falsos da cultura dominante. Em todas as áreas da atividade humana, essa "desfiguração" levou os cínicos a adotar posições escandalosas.
Tornando um exemplo da política: os cínicos aparecem numa época em que, embora a pólis tradicional estivesse começando a ser abalada em suas fundações pelas conquistas do jovem Alexandre, muitos ainda não estavam prontos para abandonar seus papéis na vida civil e política. E, no entanto, Diógenes pregava o "cosmopolitismo", declarando-se "sem cidade" (a-pólis), "sem casa" (a-oikos)1, e "cidadão do universo" (kosmopolites)2. Até agora, esse cosmopolitismo tem sido considerado essencialmente negativo - uma rejeição de todos os estados existentes -, mas a contribuição de Moles para o presente livro abre novamente o debate. Seja como for, Diógenes insistia para que as pessoas se abstivessem de todo engajamento político que, como obrigações familiares e sociais, pudessem constituir um obstáculo à liberdade individual.
A "desfiguração" cínica era igualmente radical em questões religiosas.3 Em primeiro lugar, eles viraram a hierarquia tradicional dos seres de cabeça para baixo: a série animal-homem-deus foi transformada em homem-animal-deus. Para o homem, como um ser de desejo e angústia, animal e deus constituíam, respectivamente, o modelo concreto e teórico da auto-suficiência e da indiferença e, em consequência, da felicidade. Isso não significa, porém, que os cínicos fossem pios. Eles não tinham qualquer interesse por questões religiosas e consideravam que deus fosse um mero pontode referência teórico. Em geral, pode-se dizer que a sua atitude em relação à religião era cética ou agnóstica: eles preferiam não fazer julgamentos quanto a questões que transcendiam o seu entendimento. Embora vissem o homem como estando diante de um mundo irracional, constrangido a se dobrar aos caprichos da fortuna, recusavam-se a viver em medo constante dos deuses e dos castigos do Hades. Esta, além do mais, era a razão de invejarem os animais, que eles consideravam felizes por não terem nenhuma idéia de um deus que pode recompensar e punir. Tais pontos de vista, combinados a críticas contundentes do antropomorfismo, dos Mistérios, da oração, da interpretação dos sonhos, das purificações rituais e de outras instituições religiosas, iam diretamente contra a ideologia religiosa tradicional.
Diógenes também "desfigurava" a filosofia, não só por sua crítica a filósofos contemporâneos como Platão, Euclides ou Aristipo e por sua rejeição a todos os sistemas, preferindo demonstrar suas crenças por meio de suas ações, mas também por afirmar que a filosofia não esá ao nosso alcance e que tudo o que podemos fazer é fingir.4 Como era próprio de Diógenes renegar em alto e bom som a sua "desfiguração"! Assim como Sócrates já insistira, a filosofia não deveria mais ser reservada a uma elite social ou intelectual; todos poderiam filosofar. Desse modo, não é surpreendente que, no Império Romano, o cinismo tenha se tornado a filosofia popular da antiguidade.
Armado com a metáfora da "desfiguração" que ele próprio havia escolhido, Diógenes estava preparado para todo ato de "despudor" e aceitava o seu papel como o daquele que escandaliza a sociedade.
Escolha Ética Levando à Filosofia Prática
Os cínicos, seguindo os passos de Sócrates, adotaram uma orientação fortemente ética. Mesmo que nos mantenhamos apropriadamente céticos quanto à caracterização deles feita por Diógenes Laércio (de acordo com a qual eles rejeitavam a lógica e o topoi físicos da filosofia)5, continua sendo verdadeiro que toda a sua atitude filosófica era inseparável do campo da ética. Para os cínicos, o que improtava era viver para ser feliz. Quando perguntaram a Diógenes qual era o lucro que ele tirava da filosofia, ele respondeu: "Este, se nada mais - estar preparado para todo tipo de sorte."6ou "Ser rico mesmo sem um óbolo sequer em meu nome"7. O objeto do cinismo é, entre outras coisas, demonstrar que somos de tal forma constituídos pela natureza que a felicidade é possível sob as condições mais adversas. Quem quer que o pratique vive uma vida próxima da natureza. Os cínicos romperam com o modelo intelectualista de filosofia e privilegiaram a experiência existencial do sábio.
Para alcançar a felicidade, Diógenes e seus sucessores insistiram na importancia de atos em vez de palavras. Ironicamente, em vista de suas extensas atividades literárias, seu lema poderia ter sido: "bem viver em vez de bem falar". Não devemos nos surpreender, portanto, se as formas de discurso pelas quais eles ficaram conhecidas têm pouca semelhança com o discurso filosófico tradicional. O discurso dos cínicos era cáustico e agressivo; eles encurralavam o interlocutor até ele ser forçado a questionar a si próprio. É por isso que jogos de palavras, sarcasmo ácido e observações implacáveis são características de seus próprios métodos e do modo comq ue foram representados por outros.
Notas:
1. Cf. D. L. 6, 38 = V B 263 G.
2. Cf. D. L. 6, 63 = V B 355 G.
3. Ver a contribuição de GOULET-CAZÉ neste livro
4. D. L. 6, 64 = V B 364 G.
5. Cf GOULET-CAZÉ, Le cynism est-il une philosopie?., 291-92. As conclusões da demosntração global realizada por P. HADOT, Les divisions des parties de la philosophie dans l' antiquité, Museum Helveticu, 15, 1979, 201-33, podem ser aplicadas a D. L. 6, 103. Estamos, portanto, justificados em supor que foi após o fato que alguns estóicos - talvez mais especificamente Apolodoro de Selêucia - deram à concepção que os cínicos tinham da filosofia, que era certamente unitária, uma formulação que trouxe à cena as três partes da filosofia que eles próprios distinguiram.
6. D. L. 6, 63 = V B 360 G.
7. Gnomologium Vaticanum 743, n. 182, p. 74 STERNBACH = V B 361 G.
Bibliografia:
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. (Org.). Os Cínicos: O Movimento Cínico na Antiguidade e o Seu Legado. Edições Loyola: São Paulo, 2007. p. 34-36
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