Compreende-se que, faltando critério geral da verdade, desapareça também toda possibilidade de encontrar qualquer verdade particular. Mas nem por isso desaparece a necessidade da ação. É justamente para resolver o problema da vida que Carnéades excogita a sua célebre doutrina do "provável" , claramente referida por Sexto Empírico na seguinte passagem:
1. A representação, com relação ao objeto, é ou verdadeira ou falsa; ao invés, com relação ao sujeito, aparece como verdadeira ou falsa. Posto que a verdade objetiva escapa ao homem, não resta senão ater-se ao que aparece como verdadeiro. Portanto, a representação que aparece como verdadeira com suficiente evidência é critério de verdade. Ora, a representação que aparece como verdadeira é o provável. 2
2. Porque as representações são sempre relacionadas e ligadas entre si, um grau mais elevado de probabilidade oferece a representação que é acompanhada de outras que lhe são conexas, de maneira a não ser contradita por nenhuma delas (por exemplo, se penso reconhecer de longe a figura de um homem, tenho uma representação que me parece verdadeira; mas se noto que todo o complexo de representações ligadas a ela, como a roupa, o gesto, a estatura, o modo geral, etc., não desmentem aquela representação, então tenho a representação persuasiva e não contradita, que possui, obviamente, um grau maior de porbabilidade). 3
3. Enfim, a representação persuasiva não contradita é examinada por todas as partes é a que, às características das duas precedentes, acrescenta também a garantia de um metódico exame completo de todas as representações conexas:
E aqui temos ainda um grau maior de probabilidade:
Nas circunstâncias em que for preciso decidir com urgência, deveremos nos contentar com a primeira representação, se tivermos mais tempo busquemos a segunda, e se tivermos à disposição todo o tempo para proceder ao exame completo, a terceira. 6
Com base nessa doutrina, falou-se do probabilismo carneadiano e considerou-se esse probabilismo como uma via intermediária entre o ceticismo e o dogmatismo. 7 Recentemente a crítica mostrou que a doutrina do provável de Carnéades, mais do que uma profissão de dogmatismo mitiagado, deve ser entendida como argumentação dialética dirigida a inverter o dogmatismo dos estóicos, analogamente ao que vimos a propósito da doutrina do razoável ou do plausível de Arcesilau. 8
A favor dessa nova exegese, um argumento muito forte afirma que, assim como o eulogon (razoável), também o pithanón (provável) é um conceito tipicamente estóico. Eis as definições estóicas:
Dessas afirmações fica evidente que Arcesilau explorou o eulogon, Carnéades, ao contrário, o pithanón: o primeiro para mostrar que o sábio estóico, contra as próprias pretensões, uma vez que não existia um critério absoluto de verdade, na realidade regulava-se pelo critério do eulogon; o segundo para mostrar, do mesmo modo, que o sábio estóico, dado que não exisita o critéiro absoluto de verdade, como todos os homens comuns, regulava-se pelo critério do provável.
Se não existe representação compreensiva, tudo é incompreensível (acataléptico) e a posição consequente a ser assumdia é:
a) ou a epoché, isto é, a suspensão do assenso e do juízo;
b) ou o assenso dado ao que, todavia, é incompreensível.
Se, teoricamente, a primeira posição é a correta, é a segunda que, praticamente, como homens somos obrigados a abraçar para viver. Os estóicos não constituem uma exceção: o seu agir funda-se-á não sobre o imaginário critério absoluto de verdade, mas sobre o critério da probabilidade, que não é objetivo, mas subjetivo, e, em todo caso, o único do qual o homem dispõe. Confirma essa interpretação dialética da argumentação carnediana o fato de que também a distinção e a formulação dos três graus de probabilidade são feitos através de uma terminologia de origem estóica. 11
Notas:
1. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 166
2. Cf. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 166-175
3. Cf. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 176-181
4. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 182
5. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 184
6. Cf. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 185-189
7. Para maiores posições da crítica a respeito, cf. Zeller, Die Philosophie der Griechen, III, 1, pp. 531ss.; mais nuançado é Brochard, Les Sceptiques Grecs, pp. 127ss.
8. Cf. Coussin, Le Stoicisme de la nouvelle acadêmie, pp. 259ss.; Robin, Pyrrhon..., pp. 95ss.; Dal Pra, Lo Sceticismo greco, 1, pp. 270ss.
9. Diógenes Laércio, VII, 76
10. Diógenes Laércio, VII, 75
11. Cf. Coussin, Le stoicisme de la nouvelle académie, pp. 164ss.; Dal Pra, Lo sceticismo greco, I, pp. 270-281.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. III. São Paulo: Loyola, 1994. p. 432-435
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"Assim raciocinava Carnéades, contrastando com os outros filósofos, para demonstrar a inexistência do critério. Interrogado, porém, sobre algum criterio para a conduta da vida e para a aquisição da felicidade, foi constrangido de certo modo, a assumir, também ele, por sua vez, posições a respeito disso, afirmando: 1. A representação provável, 2. a provável e não contradita e 3. a examinada em todas as partes." 1
1. A representação, com relação ao objeto, é ou verdadeira ou falsa; ao invés, com relação ao sujeito, aparece como verdadeira ou falsa. Posto que a verdade objetiva escapa ao homem, não resta senão ater-se ao que aparece como verdadeiro. Portanto, a representação que aparece como verdadeira com suficiente evidência é critério de verdade. Ora, a representação que aparece como verdadeira é o provável. 2
2. Porque as representações são sempre relacionadas e ligadas entre si, um grau mais elevado de probabilidade oferece a representação que é acompanhada de outras que lhe são conexas, de maneira a não ser contradita por nenhuma delas (por exemplo, se penso reconhecer de longe a figura de um homem, tenho uma representação que me parece verdadeira; mas se noto que todo o complexo de representações ligadas a ela, como a roupa, o gesto, a estatura, o modo geral, etc., não desmentem aquela representação, então tenho a representação persuasiva e não contradita, que possui, obviamente, um grau maior de porbabilidade). 3
3. Enfim, a representação persuasiva não contradita é examinada por todas as partes é a que, às características das duas precedentes, acrescenta também a garantia de um metódico exame completo de todas as representações conexas:
"Na representação examinada por todas as partes, submetemos atentamente a exame de cada uma das representações concorrentes, como se faz nas assembléias populares, quando o povo examina cada um dos que se apresentam à eleição para governar ou para julgar, a fim de ver se é digno de que lhe seja confiado o ofício de governador ou de juíz." 4
E aqui temos ainda um grau maior de probabilidade:
"Do mesmo modo que na vida, quando indagamos sobre um fato de pouca importância, interrogamos só a uma testemunha, quando o fato é de máxima importância, a mais de uma testemunha, e, se a coisa nos diz respeito, examinamos, também, a cada uma das testemunhas, com base nas deposições dos outros; assim, diz Carnéades, nas coisas de pouca importância usamos como critério a representação apenas provável, nas de alguma importância a não contradita, nas que concernem à felicidade, a representação examinada por todas as partes." 5
Nas circunstâncias em que for preciso decidir com urgência, deveremos nos contentar com a primeira representação, se tivermos mais tempo busquemos a segunda, e se tivermos à disposição todo o tempo para proceder ao exame completo, a terceira. 6
Com base nessa doutrina, falou-se do probabilismo carneadiano e considerou-se esse probabilismo como uma via intermediária entre o ceticismo e o dogmatismo. 7 Recentemente a crítica mostrou que a doutrina do provável de Carnéades, mais do que uma profissão de dogmatismo mitiagado, deve ser entendida como argumentação dialética dirigida a inverter o dogmatismo dos estóicos, analogamente ao que vimos a propósito da doutrina do razoável ou do plausível de Arcesilau. 8
A favor dessa nova exegese, um argumento muito forte afirma que, assim como o eulogon (razoável), também o pithanón (provável) é um conceito tipicamente estóico. Eis as definições estóicas:
"É razoável (eulogon) um juízo que tem várias possibilidades de ser verdadeiro. Exemplo: amanhã estarei vivo." 9
"É juízo provável aquele que induz ao assenso. Exemplo: 'Quem gerou algo é a sua mãe.' Este, todavia, não é necessariamente verdadeiro, porque a galinha não é mãe do ovo." 10
Dessas afirmações fica evidente que Arcesilau explorou o eulogon, Carnéades, ao contrário, o pithanón: o primeiro para mostrar que o sábio estóico, contra as próprias pretensões, uma vez que não existia um critério absoluto de verdade, na realidade regulava-se pelo critério do eulogon; o segundo para mostrar, do mesmo modo, que o sábio estóico, dado que não exisita o critéiro absoluto de verdade, como todos os homens comuns, regulava-se pelo critério do provável.
Se não existe representação compreensiva, tudo é incompreensível (acataléptico) e a posição consequente a ser assumdia é:
a) ou a epoché, isto é, a suspensão do assenso e do juízo;
b) ou o assenso dado ao que, todavia, é incompreensível.
Se, teoricamente, a primeira posição é a correta, é a segunda que, praticamente, como homens somos obrigados a abraçar para viver. Os estóicos não constituem uma exceção: o seu agir funda-se-á não sobre o imaginário critério absoluto de verdade, mas sobre o critério da probabilidade, que não é objetivo, mas subjetivo, e, em todo caso, o único do qual o homem dispõe. Confirma essa interpretação dialética da argumentação carnediana o fato de que também a distinção e a formulação dos três graus de probabilidade são feitos através de uma terminologia de origem estóica. 11
Notas:
1. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 166
2. Cf. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 166-175
3. Cf. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 176-181
4. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 182
5. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 184
6. Cf. Sexto Empírico, Contra os Matem., VII, 185-189
7. Para maiores posições da crítica a respeito, cf. Zeller, Die Philosophie der Griechen, III, 1, pp. 531ss.; mais nuançado é Brochard, Les Sceptiques Grecs, pp. 127ss.
8. Cf. Coussin, Le Stoicisme de la nouvelle acadêmie, pp. 259ss.; Robin, Pyrrhon..., pp. 95ss.; Dal Pra, Lo Sceticismo greco, 1, pp. 270ss.
9. Diógenes Laércio, VII, 76
10. Diógenes Laércio, VII, 75
11. Cf. Coussin, Le stoicisme de la nouvelle académie, pp. 164ss.; Dal Pra, Lo sceticismo greco, I, pp. 270-281.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. III. São Paulo: Loyola, 1994. p. 432-435
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