O Corpo Faustiano: Bioética em Onfray

Toda existência supõe uma saída do nada com a única perspetiva de retornar a ele um dia. De sorte que podemos definir a vida como o que se dá entre dois nadas. Mas são vagos os limites que permitem dizer claramente aquém, além, aqui, ali, antes, depois. Que um ser provém de um espermatozóide e de um óvulo, ninguém ignora; mas qual é o estatuto filosófico desses dois objetos separados? Semivivo? Vivente em potencial? Duas forças complementares, vivas, mas que exigem a reunião de um outro vivente, o real, o verdadeiro desta vez?

Vivos os bilhões de espermatozoides descartados depois que um só deles penetra o invólucro do gameta feminino, mas vivas também as bactérias que trabalham o cadáver depois da morte. Antes da vida já é a vida; depois dela, ainda é ela. Como ver na eferverscência do real, nascimento e passamento confundidos, surgimento do nada e volta a seu seio associados, outra coisa que não as múltiplas modificações da vida?

O humano do homem se inscreve portanto no vivo, entre os dois nadas. Ele não é consusbstancial ao vivo, mas surge, depois pode desaparecer, no próprio processo vital. Assim, algumas horas depois da formação, o ovo bem vivo não é humano. Para os cristãos, que falam de pessoa potencial, respondamos que qualquer u, apesar de morto potencial, está vivo, porque da potencialidade à realidade há, felizmente, todo um mundo.



A pessoa potencial merece as considerações que lhe cabem: ela se torna pessoa quando é real, enquanto isso, por ser potencial, não é nada mais que um sofisma oriundo da escolástica tomista. Falta à pessoa potencial algo mais para ser uma pessoa real: no caso, a humanidade.

O esperma não é uma pessoa, o óvulo tampouco, nem o embrião. A humanidade surge num homem não com a sua forma (humana), mas com sua relação (humana) com o mundo. O puro ser no mundo não basta, a barata também  está no mundo. É necessário uma conexão, uma relação interativa, uma ligação com a realidade tangível.

Primeiro, a humanidade de um ser supõe nele a capacidade de perceber o mundo, de senti-lo, aprendê-lo sensualmente, ainda que sumariamente. Para tanto, é necessário certo grau de desenvolvimento do sistema nervoso. Os primeiros dias, as primeiras semanas não bastam para constituir o agregado de matéria e de células além do vivo sem realidade pessoal. A matéria cinzenta deve poder reagir aos estímulos redutíveis a dois tipos: a capacidade de sentir o prazer e a possibilidade de sentir dor - base do hedonismo. Cientificamente, essa possibilidade anatômica se situa na vigésima quinta semana de existência do feto. É essa a data a partir da qual ele sai do nada para entrar no humano, apesar de ter sido vivo desde o encontro espermatozóide/óvulo.

Depois, muito mais tarde, a humanidade de um indivíduo se define na tríplice possibilidade conjunta de uma consciência de si, de uma consciência dos outros e de uma consciência do mundo, com as possibilidades induzidas de interações entre si e si, si e outrem, si e o real. Quem ignora o que é, quem é outrem e o que o mundo existe sai da humanidade, ainda que permaneça vivo. Mas o que precede a humanidade e o que a segue não têm a mesma carga ontológica: o embrião neutro pesa menos que o cadáver saturado de memória, de afeto, de historia.

Aquém do humano e além dele, todas as operações humanas são ontologicamente justificadas e legitimadas. Antes: seleção genética, trabalho sobre o embrião, triagem destes, contracepção, aborto, transgênese; depois, em caso de morte cerebral constatada, de vida artificialmente mantida, de coma irreversível devidamente constatado: eutanásia, retirada de órgãos.

ONFRAY, Michel. Potência de Existir. Martins Fontes: São Paulo, 2010. p.113-115

Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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