Helvétius, Cobrador de Impostos

por Breno Lucano

Nascido em janeiro de 1715, faz seus estudos de direito com os jesuítas do colégio Louis-le-Grand. Seu pai o manda para Caen para, junto de seu tio, sr. D'Armanche, aprender o ofício de coletor de impostos reais. Ocupa altos cargos em Versalhes, posto raro e reservado, remuneração razoável, o jovem de 23 anos junta dinheiro rápido. O coletor, responsável pelo recolhimento da maioria dos tributos reais indiretos - arrendamento de terras, imposto de circulação de mercadorias, imposto de barreiras, ... -, obtém uma porcentagem nada desprezível. Na medida do possível, Helvétius se mantém sempre generoso e bondoso, sua principal marca de caráter.

Mais tarde, cansado do serviço de cobrador de impostos, pede demissão. Na época, renunciar a tal oportunidade é algo sem precedentes. Casa-se com srta. Ligneville, que lhe dá quatro filhos, dos quais apenas dois sobrevivem. Compra terras em Voré, no Orne, e em Lumigny, na Brie. Alterna sua residência nesses dois lugares e em seu palacete parisiense, na rua Sainte-Anne.

Prossegue em sua generosidade. Consegue, por exemplo, que o rei isente os camponeses de Rémalard e arredores da obrigação de hospedar as tropas de cavalaria, que habitualmente se dirigem à região pela qualidade e abundância da forragem e do pasto. Também paga um cirurgião para que atenda os doentes.


Seus primeiros amores literários são dedicados à felicidade e ao prazer. Redige Le Bonheur (A Felicidade), Épître sur les arts (Epístola sobre as artes) e Épître sur le plaisir (Epístola sobre o prazer). Esses trabalhos de juventude reúnem todas as instuições de suas obras futuras: Do Espírito e Do Homem: a busca do prazer constitui o móbil de todas as nossas ações, comportamentos e pensamentos, agindo como mola propulsora da coletividade; o conhecimento desse princípio deve agir como facilitador da implementação de uma legislação sábia e saudável, útil para realizar a felicidade dos indivíduos e da sociedade; somente a utilidade deve motivar o pensamento e a ação.

Durante toda a sua vida, Helvétius mantém equidistante teoria e prática. Formula suas idéias levando em consideração as possibilidades pragmáticas. Quando escreve sobre o luxo, o dinheiro, a produção, o comércio, a indústria, a circulação das riquezas, não se exprime a partir do olhar de um teórico, mas elabora na qualidade de homem de ação preocupado com a eficácia prática.

Sua fortuna e rendas lhe permitem viver no ócio entre seus castelos e palacete parisiense, totalmente dedicados à conversação, à vida leviana, à escrita e à caça. Mas Helvétius envereda por outros rumos. Explora o patrimônio geológico da região, principalmente o minério de ferro. Os industriais da região não tem boa estima pelo filósofo: falta estima pelo dinheiro, verdadeiro culto ao lucro e distribui fartamente seus próprios fundos.

No salão de Helvétius encontram-se grandes nomes filosóficos do momento. Especifiquemos: o velho Fontenelle, quase centenário; Marmontel, acadêmico, historiógrafo da França; Grimm, o pai da Branca de Neve, mas também o fundador da filologia alemã; Buffon, inventor do naturalismo francês; Raynal, abade anticlerical e anticolonialista; Morellet, filósofo, colaborador da Enciclopédia; Diderot, que não precisa de apresentação; Turgot, homem de Estado, reformador no espírito dos fisiocratas; Condorcet, matemático especializado em estatísticas e futuro artífice das reformas pedagógicas desejadas por Helvétius; Hume, também famoso demais para precisar de apresentação; Condillac, o abade sensualista; Beccaria, o teórico da supressão da pena de morte; Adam Smith, o famoso liberal autor de Riqueza das Nações; Rousseau, a quem o anfitrião empresta dinheiro; Gibbon, o historiador inglês de uma monumental obra sobre as causas da grandesa e queda do Império Romano; Holbach, o ateu radical; entre várias outras mentes menos conhecidas. Durante quatro meses por ano, toda essa alta-roda se encontra para almoçar todas as terças-feiras, a partir das catorze horas.

Quintas e domingos são dias no salão de Holbach, onde, também, uma vez mais, constrói-se o penamento das Luzes que irradiam a Europa. Na casa do barão, leem-se e comentam-se os manuscritos espinosistas, anticristãos e panteístas. O ateísmo até aparece, mas sublimado pelo deísmo, crença majoritária do século XVIII. Na casa de Helvétius, o ateísmo sopra com menos força.

Helvétius conhece a Inglaterra, berço de Hobbes, terra de conquistas liberais e de liberdades constitucionais. Em seguida, conhece a Prússia, país do conhecido rei-filósofo Frederico II, apaixonado pela leitura de Marco Aurélio. Em Potsdam, o antigo benfeitor de La Mettrie o convida para se integrar à corte. O filósofo recusa. Durante esse tempo, Helvétius faz anotações, lê, reflete. As consequências políticas dos escritos de Do Espírito foram fatais. O filósofo não se abre, não se queixa, permanece discreto e silencioso.

De 1759 a 1769 Helvétius trabalha numa obra que deseja ser póstuma: De l'homme. O livro é publicado dois anos após sua morte, em 1773. A publicação post mortem garante total liberdade de escrita. Aquele que afirma que após a morte nada há, nada teme, sobretudo os censores, os juízes, o clero e outros instrumentos repressores. Agora não há motivos para mascarar suas verdadeiras linhas, suavizar suas colocações, justificar suas afirmativas. O livro há muito desejado.

Em sua segunda grande obra, nada de redefinições, mas de precisões e ataques frontais aos inimigos de sempre: a Igreja, o clero, o papa, os jansenistas, os jesuítas, os filósofos escolásticos, os beatos de igreja, a censura, os déspotas, os monges, ... De um livro para o outro, percebe-se nitidamente a mudança de humor de um homem marcado pela intriga: menor grau de humor, menos anedotas alegres, mais cólera e uma leveza que cede espaço para a séria militância. Anuncia uma era de fanatismo e superstição e, embora não afirme com todas as letras, defende a idéia de que a França perecerá em razão de um governo pernicioso.

Em 1771 Helvétius morre em seu palacete na rua Sainte-Anne, cercado de amigos, entre os quais, Holbach. Consciente, recusa os sacramentos e a visita de um padre. A dor ligada às perseguições e à humilhação pela publicação de Do Espírito o atormentaram até o fim. Sua sepultura encontra-se na igreja Saint-Roch. Aos cinquenta e sete anos, retorna ao nada.


Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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