A Oitava Prova encontra-se no terceiro e último tomo das Memórias de Jean Meslier, cujo assunto central é a natureza da alma. Aqui o cura pretende demonstrar de que modo aquilo que aquilo que a tradição teológica chama alma não pode ser espiritual e mortal. O destinatário, assim como as outras Provas, continuam sendo os cartesianos e sua tese de que a extensão é a essência da matéria e o pensamento o principal atributo do espírito, bem como a conhecida separação de um e outro.
Para desenvolver sua argumentação, o cura se associa à tradição realista da filosofia. Toda a realidade se concentra no universo material, de modo que tudo quanto não for constituído por forma, figura ou extensão não será real por não possuir substância. A alma deve necessariamente ser material para que possa propor vivacidade e força aos corpos. Imaginar a alma desprovida de corpo e de extensão é imaginar um ser que em algum momento deixou de ser um ser, um real que se tornou irreal. Conclui o padre que a idéia de uma alma espiritual e espiritual seria mais uma das várias fantasias criadas pelos religiosos.
Meslier explica que nos filósofos antigos era comum se encontrar o entendimento de que a alma possuia conformação material, incluindo anjos e deuses. Entretanto, os cartesianos - incluindo Malebranche - difundiram a errônea idéia de que o homem era constituído por duas categorias, matéria e espírito. Contrariando Malebranche, afirma que a matéria é capaz de pensar, embora não qualquer tipo de matéria. Para isso, faz-se necessária uma certa organização e disposição. Afirma o padre:
"Estou certo de que sou uma substância que pensa, que sente, que deseja e que raciocina, e eu estou igualmente certo de ser também uma substância material e corporal." (Cf Souza, M.G. "Substância e realidade (...), op. cit. p. 46, nota I
Nesta afirmação, Meslier afirma seu próprio cogito, o cogito meslierita. Perceba: atribuir ao espírito o status de material significa dizer que o pensamento e o sentimento possuem extensão, peso, largura, cor. Isso pareceria um absurdo na concepção de um cartesiano. Mas assinala o cura que o mesmo ocorre com o som, com o cheiro, o sabor. Nada disso é extenso e, no entanto, encontram-se nos corpos. Explica que esses fenômenos são na verdade "modos ou modificações da matéria", forças inerentes e constituintes do Ser.
Após demonstrar que a alma não é material, Meslier parte para demonstrar que a alma não pode ser imortal. Todo o raciocínio cartesiano pode ser configurado da seguinte forma: o que é espiritual não tem extensão; aquilo que não tem extensão não possui partes que podem ser divididas; o que não possui partes para divisão não pode ser corrompido; sem corrupção, não pode deixar de existir; o que não deixa de existir, permanece. Esse raciocínio é exposto na Sexta das Meditações de Descartes e termina com a conclusão de que a alma é, portanto, imaterial e imortal.
O padre sustenta lembra que os dualistas admitem que o pensamento e o sentimento são modificações do espírito. Meslier corrige esses fundamentos afirmando que tudo o que se modifica se corrompe, assim como a matéria. Ora, se ocorre corrupção no espírito, então ele não pode ser imortal. Toma de empréstimo algumas idéias do materialismo antigo, segundo a qual espírito e matéria são constituídos por tipos diferentes de matéria. A matéria do espírito seria mais sutil que a do corpo. E mais: as modificações na alma produzem efeitos no corpo. Estados febris, de doença ou embriaguês confundem o pensamento, produzem intolerância e entorpecem a alma. À medida em que o corpo se fortalece ou definha a alma acompanha esses movimentos.
As referênias feitas por Meslier na Oitava Prova sobre a Bíblia são muitas e servem, claro, como provocação e forma de explanar "teologicamente" suas teses. O cura mostra que não há no Velho Testamento qualquer referencia à espiritualidade ou imortalidade da alma, assim como também não afirma a existência de castigos ou recompensas após a morte. Quando Moisés promete o paraíso ao seu povo, quando ele fala em castigos, é esta vida e este mundo que ele tem em vista. Os cristãos mentem, portanto, quando prometem compensações futuras de um sofrimento terreno.
A pergunta que se faz é a seguinte: se não há compensação, então tudo é permitdo por Moisés? Apesar de desprezar a figura mítica de um Deus que castiga, Meslier entende que alguns tipos de Mal são necessários ao mundo o próprio equilíbrio entre os diversos seres. As guerras, a peste, a destruição são tomadas como uma forma de equilibrar o quantitativo, de modo que se não existissem a população das espécies aumentaria em proporções insuportáveis para a própria manutenção do planeta. E tudo quando chamamos normalmente Mal não é produzido por uma força imaterial, mas é regido unicamente pelo acaso.
Ao fim da Oitava Prova, o autor demonstra portanto que a alma é material e mortal e que pensar e sentir são atributos da matéria. Prova ainda que os argumentos dos cartesianos são destruídos por suas próprias forças internas por ausência de clareza e distinção. Esses fatos contrariam os preceitos fundamentais de Descartes em seu Discurso do Método. Em outras palavras, Meslier indica que falta aos cartesianos serem cartesianos em suas demonstrações.
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