por Breno Lucano
Frequentemente somos questionados quanto às articulações existentes entre a fé e a moral. Em termos mais simples, qual o real impacto da fé - ou sua ausência - na moralidade? Minhas experiências no convento franciscano parecem fazer algum sentido para uma pergunta que parece tão óbvia: a fé possui importante papel na motivação, além de conferir sentido ao mundo. Posteriormente, pude verificar a diferença sob o enfoque ateu, algo que me fez lembrar de Kant em seu célebre Crítica da Razão Pura, onde ele resume o domínio da filosofia em três questões: "que posso conhecer? Que devo fazer? Que posso esperar?" Confrontemos rapidamente cada uma das três com a perda eventual da fé.
Em termos de conhecer, a perda da fé em nada produz alteração. O conhecimento científico continua sendo o mesmo, com todos os seus limites. Talvez a crença em Deus produza algum estado de espírito, o motive, propicie um sentido último às suas pesquisas, sem, contudo, modificá-las, sob pena de deixar de ser pesquisador. Pode mudar sua relação subjetiva com o conhecimento; mas não muda o próprio conhecimento, nem seus limites objetivos.
Se em nada muda o conhecer, tampouco muda o agir. A perda da fé não o fará trair seus amigos, ou roubar e estuprar, assinar e torturar. "Se Deus não existe, tudo é permitido", diz um personagem de Dostoiévski. Claro que não, já que não me permito tudo! A moral é autônoma, mostra Kant, ou não é moral. Quem só se impedisse de matar por medo de uma sanção divina teria um comportamento sem valor moral: seria apenas prudência, medo do policial divino, egoísmo. Quanto a quem só faz o bem para a sua salvação, não faria o bem (já que agiria por interesse, e não por dever ou por amor) e não seria salvo.
Aqui, aliás, Kant encontra seu ápice: não é porque Deus me ordena alguma coisa que está certo (porque nesse caso poderia ter sido certo, para Abraão matar seu filho); é porque uma ação é boa que é possível acreditar que ela é ordenada por Deus. Não é mais a religião que funda a moral; é a moral que funda a religião. É onde começa a modernidade. Ter uma religião, precisa a Crítica da Razão Prática, é "reconhecer todos os deveres como mandamentos divinos". Quando se perde a fé, os mandamentos perdem seu status de divino e passam a ser imperativos impostos de nós a nós.
Então, o que resta é o sentido de nobreza. E nobreza porque, na moral, não há nada além do sentimento de dignidade. Roubar e matar não fazem mais parte do agir - não porque são divinamente errados ou legalmente criminais -, mas porque não são dignos de mim, de minha educação, de minha história. Proíbo-me de fazê-lo, e, portanto, isso faz do ato algo moral. Não preciso crer em Deus para isso.
E se a falta de fé pouco importa, no fundo o que esperar senão a realização do digno no presente. Isso porque o digno se realiza no instante, sempre no ato realizado, nunca no ato que ainda não se concretizou e que não existe senão sob intenção. Deus, sendo a-temporal, age no espaço e no tempo; a dignidade, apenas no presente. Quando muito, no passado por meio da recordação: esse ou aquele ato do passado parecem heróico quando julgados hoje.
Em todas as grandes questões morais crer ou não em Deus não muda nada de essencial. Quer você tenha ou não uma religião, isso não o dispensa de respeitar o outro, sua vida, sua liberdade, sua dignidade; isso não anula a superioridade do amor sobre o ódio, da generosidade sobre o egoísmo, da justiça sobre a injustiça. O fato de as religiões terem nos ajudado a compreender isso faz parte da sua contribuição histórica, que foi grande. Isso não significa que elas bastem para compreendê-lo ou detenham o monopólio dessa compreensão. Bayle, desde o fim do século XVII, havia salientado vigorosamente: um ateu pode ser virtuoso, tanto quanto um crente pode não sê-lo.
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