Sócrates |
por Breno Lucano
A atividade filosófica de Sócrates tinha em sua origem — a crer no depoimento da Apologia platônica — uma dimensão religiosa. Se, em nome da indicação contida na afirmativa do oráculo, Sócrates desenvolveu uma insistente investigação sobre o significado de palavras, certamente não visava, como interpretará Aristóteles, à definição de conceitos.
Sócrates, em seu ofício, dialoga. De modo geral, seu interlocutor, entendido como autoridade em algum assunto, o decepciona.
Isso parece confirmar a Sócrates o sentido da superioridade que lhe fora atribuída pelo oráculo, isto é, o reencontro consigo mesmo só pode partir da consciência da própria ignorância. Mas essa ignorância, que é um atributo de Sócrates, não é geralmente assumida pelas outras pessoas, que se julgam na posse de verdades. Torna-se necessário, portanto, levá-las, de saída, a despojar-se dessas verdades, de modo a torná-las aptas a caminharem em direção ao conhecimento de si mesmas. A demolição das falsas idéias que fundamentam a falsa imagem que as pessoas têm delas próprias é o que pretende a ironia: momento do diálogo em que Sócrates, reafirmando nada saber, força o interlocutor a expor suas opiniões, para, com habilidade, emaranhá-lo na teia obscura de suas próprias afirmativas e acabar reconhecendo a ignorância a respeito do que antes julgava ter certeza.
Orientado por seu "demônio" (daimon), espécie de voz interior que às vezes lhe freava as iniciativas e impedia-o de dialogar com determinadas pessoas, Sócrates escolhia aqueles com os quais a conversa poderia assumir caráter de reconstrução. Nessa outra fase do método socrático, o interlocutor é levado, progressivamente, pela habilidade das questões propostas, a tentar elaborar ele mesmo suas próprias idéias. Sócrates exerce o parto das idéias, ajuda o interlocutor a raciocinar nas próprias questões postas e ele mesmo encontrar as respostas.
Na escolha de seus interlocutores, Sócrates não levava em conta fatores de natureza social e econômica. Seu daimon guiava-o no processo seletivo, fazendo-o perceber, com um agudo senso de oportunidade pedagógica, quais as pessoas que ainda não dispunham de condições psicológicas para ser submetidas ao tratamento da maiêutica.
Diferentemente dos sofistas, Sócrates não cobrava o exercício do filosofar: considerava-se a serviço do deus. Enquanto os sofistas propunham a retórica como caminho para ascensão da vida pública, Sócrates filosofava tendo a investigação como objetivo último. Essa forma de seleção dos interlocutores tornava democratizadora a pedagogia socrática.
Mas, para aquela democracia, que recusava o direito de cidadania às mulheres, aos estrangeiros e aos escravos — portanto, à maioria da população de Atenas —, o Sócrates pedagogo e médico de almas constituía uma denúncia de suas limitações e, conseqüentemente, um perigo. No diálogo Ménon, Platão descreve Sócrates realizando a maiêutica com um escravo e levando-o a conceber noções sobre intrincada questão matemática (relativa aos "irracionais"). Mesmo que não se trate, no caso, do relato de um fato efetivamente ocorrido, ou se teria sido outro o conteúdo da conversação entre Sócrates e o escravo, não importa: a situação descrita por Platão é certamente representativa do menosprezo de Sócrates pelos preconceitos sociais da própria democracia ateniense. Demonstrar publicamente que um escravo era capaz, se bem conduzido pelo processo educativo, de ter acesso às mais importantes e difíceis questões científicas era sem dúvida provar que ele era pelo menos igual, em sua alma, a qualquer cidadão. Essa é a diferença marcante, todavia, entre os escravos gregos e os escravos das sociedades modernas: os gregos eram gradativamente humanizados e o fato escravidão posto apenas como condição transitória.
Para os primeiros filósofos gregos, o homem seria explicado pelo mesmo substrato ou pela mesma natureza (physis) que justificaria a existência de todo o real. Se tudo era constituído ou proviria de água, ou de fogo, ou de átomos, também o homem teria na água, no fogo ou nos átomos as "raízes" de sua realidade física, psíquica e moral. Como transparece claramente no pitagorismo, a ética se inseria na cosmologia.
A tradição ética na cultura grega parte de Homero e Hesíodo. As epopéias homéricas (séculos X-VIII a.C.) formulam uma ética aristocrática que fazia da virtude (aretê) um atributo inerente à nobreza e manifestado por meio da conduta cortesã e do heroísmo guerreiro. Justamente porque identificada a atributos da nobreza, a aretê homérica era usada para designar não apenas a excelência humana, como também a superioridade de seres não-humanos — como a força dos deuses e a rapidez dos cavalos nobres. Originariamente, portanto, a palavra aretê não tem o sentido preciso de "virtude". Ainda não atenuada por seu uso posterior puramente ético, estava de início ligada às noções de função, de realização e de capacitação, denotando a excelência de tudo o que é útil para algum ato ou fim. Apenas com Hesíodo (século VIII a.C.) é que a aretê passa a assumir significado mais estritamente moral: deixa de ser atributo natural de bem-nascidos para se transformar numa conquista, resultado do esforço e do trabalho enobrecedor de qualquer homem. Por isso mesmo é que com Hesíodo já se propõe a questão do ensino da aretê, que será retomada pelos sofistas e por Sócrates.
Sócrates criou novo entendimento sobre psique que passou a dominar a tradição ocidental. Antes, como em Homero, a psique era o "duplo" que podia se desprender provisoriamente durante o sono ou definitivamente, com a morte, mas que nada tinha a ver com a vida mental ou as "faculdades" da pessoa. Nos órficos, era o princípio superior, que se reencarnava sucessivamente, atravessando o processo purificador que a reconduziria às estrelas e a reintegraria na harmonia universal; mas, enquanto ligada ao corpo, só se manifestava em situações excepcionais — sonhos, visões, transes. Nos pensadores jônicos do século VI a.C, a psique era apenas uma parte do todo: porção do pneuma (ar) infinito que habitava o corpo, vivificando-o provisoriamente até escapar, como último alento, na hora da morte — como em Anaxímenes de Mileto; ou porção de fogo a aquecer e animar o corpo até que afinal retornasse à unidade do Fogo-Razão, o Logos universal "eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com medida" — como em Heráclito de Efeso. É a partir de Sócrates — ou pelo menos é na literatura referente a ele e que se seguiu à sua morte — que surge a concepção de alma como sede da consciência normal e do caráter, a alma que no cotidiano de cada um é aquela realidade interior que se manifesta mediante palavras e. ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade. E que, por isso, deveria ser o objeto principal da preocupação e dos cuidados do homem.
Essa concepção de alma torna compreensível a tese socrática de que virtude é conhecimento e que, por conseguinte, ninguém erra deliberadamente. Só que aquele conhecimento nada teria a ver com as opiniões flutuantes e geralmente infundadas. O conhecimento que Sócrates identifica à aretê é a episteme (ciência), não a doxa (opinião). O bem é, assim, o homem auto-construído a partir de sua própria construção maiêutica do ser, ou, em outras palavras, de um conhecimento que se torna possível com a desconstrução dos próprios conceitos seguidos de novos surgidos pela investigação. Por isso, Sócrates defende mais a filosofia que sua própria vida e aceita deliberadamente sua condenação por corrupção da juventude.
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