Supernatural e a Questão do Mal

Cartaz da série
por Breno Lucano

Criada em 2005 por Eric Kripke e estrelada por Jared Padalecki e Jensen Ackles, Supernatural é uma série de horror urbano onde dois irmãos se vêem às voltas com um mundo pouco convencional, repleto de monstros, fantasmas, demônios, criaturas do abismo, onde sua única razão de viver é sobreviver e expulsar tais criaturas da Terra. Mas, ora, num mundo assim, tão diabólico, o mocinho principal, Deus, deve existir. Certo?

Após anos caçando monstros, Dean parece não ter tanta certeza. Mesmo tendo passado pelo Paraíso, Inferno, Purgatório, ainda não tem certeza. Quais outras evidências seriam necessárias para a existência de Deus? Vejamos.

Para salvar a alma de Sam, Dean faz um pacto com um demônio e, por isso, é tragado para o Inferno no fim da terceira temporada. Mas logo na quarta, no início, temos ele sendo puxado do Inferno por um anjo. Mesmo assim, Dean se recusa a acreditar em Deus e o seguinte diálogo é traçado:



Dean: Você não acha que, se anjos fossem reais, algum caçador, em algum lugar, já não teria visto um, em algum momento? 
Sam: Sim, Dean, você acabou de ver um. 
Dean: Eu só estou tentando criar uma teoria aqui. Pense comigo. 
Sam: Dean, nós já temos uma teoria.  
Dean: Tá bom, uma com um pouco menos de conto de fadas, por favor. 

Resgatado do Inferno, sim. Mesmo assim, Dean prossegue na dúvida e interroga Castiel porque o salvou. A resposta é simples: "coisas boas acontecem". Essa resposta representa uma contra-teoria a Dean porque o mundo para ele não parecia ser um lugar bom. O mundo, como visto por Dean, é um lugar opressor que afasta instintivamente e racionalmente a existência de Deus.

A dúvida de Dean consiste numa antiga interrogação que sempre fora feita. Como se é capaz de conciliar a existência de Deus e o Mal no mundo? Em outras palavras, como poderíamos crer na existência de Deus e, ao mesmo tempo, pensar que existem criaturas como Lúcifer, que querem a destruição do mundo? Mas a dúvida subsiste em outras esferas. Existem doenças, guerras, envelhecimento e sofrimento demais. Como Deus ficaria inerte frente à tantos males? Mesmo inconscientemente, Dean tece os argumentos de Epicuro sobre se Deus pode e é capaz de deter o Mal.

Dean está convencido de que seu mundo somente faz algum sentido se não existir Deus. Existem muitos males, mas talvez pense que é assim que o mundo deve ser. Num mundo sobrenatural deve existir um ser todo-poderoso e todo-bondade, conforme Castiel, mas mesmo assim os males ainda são reais. Como adorar e respeitar um Deus assim? Vejamos o seguinte diálogo?

Dean: Eu pensei que anjos deveriam ser guardiões, asas fofinhas, auréolas, entende, tipo Michael Landon, não machões.  
Castiel: Leia a Bíblia. Anjos são guerreiros de Deus, eu sou um soldado. 
Dean: Ah é, e por que você não luta? 
Castiel: Eu não estou aqui para ficar pendurado em seu ombro. Nós temos interesses bem maiores.  
Dean: Interesses: Há pessoas sendo cortadas em pedacinhos aqui. E, a propósito, enquanto tudo isso está acontecendo, onde diabos está o seu chefe, heim? Se é que Deus existe. 
Castiel: Existe um Deus. 
Dean: Não estou convencido disso. Porque, se existe um Deus, que diabos ele está esperando? Hã? Genocídio? Monstros vagando pela Terra? O maldito Apocalipse? E em que momento ele vai levantar o maldito dedo e ajudar os pobres bastardos presos aqui? 
Castiel: Deus age... 
Dean: Se você disser "por caminhos misteriosos", alguém me ajude, eu chuto seu traseiro. 

Castiel
Mas pode ser que Dean discorde de Epicuro. Pode ser que a razão para Deus não intervir neste mundo não seja porque Ele não existe, ou não se interessa, ou não seja capaz. Talvez a razão d'Ele não interferir neste mundo para minimizar o sofrimento da raça humana e de todo o mundo em Supernatural seja porque o mundo não foi supostamente criado para ser um lugar perfeito. Pode ser até mesmo que todo esse sofrimento tenha algum propósito.

O universo de Supernatural privilegia a polarização entre pena e recompensa. A regeneração e a ascensão da alma estão sempre presentes. A idéia de que nossos atos neste mundo, o quanto de virtude e erro se é capaz de exercer nas ações diárias, pesam positivamente ou negativamente em nossa alma. Então, o aperfeiçoamento da alma pode ser um motivo pelo qual Deus não intervém efetivamente no mundo, como é o desejo de Dean. Por outro lado, o aperfeiçoamento da alma não justifica todos os males, mas apenas na medida em que cultiva almas dignas para viver no Paraíso. Os males além dessas prerrogativas se tornam, assim, injustificáveis.

A mitologia judaico-cristã do aperfeiçoamento, recompensa, pecado, erro, Paraíso, Inferno, Purgatório não parece ser suficiente para Dean. Apesar de parecer verdadeiro que a criação de um mundo bem menos inóspito que em Supernatural, onde não há criaturas maléficas e fantasmas a nos aterrorizar, ainda assim parece que os males que persistem em nosso mundo real também não seriam suficientes para pacificar Dean.

Além do aperfeiçoamento, também pode-se argumentar, como comumente se faz, sobre o livre-arbítrio. Mas o irmão de Sam logo pode pensar, com razão, que a existência do livre agir leva invariavelmente a algum mal. É necessário que Deus permita o mal se também for necessário que se legitime o livre-arbítrio. Não poderíamos pensar de modo algum que Deus, criando criaturas livres, não esperasse o mal que surgiria nas ações geradas pela própria liberdade. As criaturas deveriam ser capazes de escolher entre o bem e o mal e com frequência escolhem o segundo.

Temos aqui o mito platônico de Anel de Giges. Giges é livre para agir, assim como as criaturas de Supernatural. E, sendo livre, pode escolher entre matar ou não o rei. As criaturas, por fezes, matam os homens, mas poderiam não os matar. Fica a escolha livre. E Giges também se encontra de forma expressiva na quinta temporada quando Sam e Dean escolhem participar ativamente de uma batalha entravada entre o Paraíso e o Inferno: Sam se torna o invólucro de Lúcifer enquanto Dean o invólucro de Miguel. Os dois anjos estão destinados a possuir os Winchester e lutar a batalha final no Apocalipse. Mas nada é tão fácil. Tanto Sam quanto Dean devem ceder o seu livre arbítrio e ser meros instrumentos para os anjos.

Mas também pode-se pensar num mundo sem livre-arbítrio. Em toda a série vemos criaturas que simplesmente se alimentam de humanos para sobreviver, como num ciclo natural na cadeia alimentar. Não entra mais em questão o mal gerado como consequência de uma escolha. Adentra-se, nesse argumento, no determinismo. Lúcifer e Miguel deveriam possuir os irmãos Winchester. Várias pessoas deveriam ser devoradas pelo rugaru. Outras tantas, serem feitas em pedacinhos por demônios. E contra isso a vontade nada pode. É assim que o mundo é.

Quais reflexões Supernatural pode nos trazer? Seria este mundo impregnado pelo otimismo de Leibniz se configurando como o melhor dos mundos possíveis? Ou seria como Sade, o mundo repleto de males de toda natureza? Estará Dean correto ao se prender ao conceito de um mundo perdido em dores desnecessárias, sofrimentos atrozes e males sem fim? Se assim for, Dean prossegue na dúvida e interroga a Castiel a todo instante: seu Deus existe?


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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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