Existe alguma diferença entre as críticas expressas pelos cínicos e as de outros filósofos? Pode-se certamente dizer que os cínicos levaram a sua crítica da religião a extremos. Porém, a maior diferença é que eles não faziam absolutamente nenhuma concessão à religião tradicional. Essa é uma atitude original, se comparada à dos estóicos ou epicuristas. Sabemos que Epicuro escreveu um livro Sobre os Deuses, um Sobre o Sagrado e outro Sobre Piedade, dedicava sacrifícios piedosos aos deuses, executava todos os rituais da religião de acordo com o uso aceito e incentivava a participação nas cerimônicas públicas. Mesmo que os deuses dos epicuristas não se importassem com os homens e não ouvissem suas orações, mesmo que eles não tivessem nenhuma atividade, Epicuro defendia a idéia de que eles existiam e chamava de loucos aqueles que os negavam, como Pródico, Crítias ou Diágoras.
No que se refere ao sábio estóico, embora ele, como seu colega cínico, não se absenha de criticar a religião popular, ainda assim ele evita se dissociar por completo das crenças da maioria das pessoas. Por conta disso, ele explica e desculpa o antropomorfismo e consegue resguardar o politeísmo, embora ao mesmo tempo exiba uma clara tendência ao monoteísmo. Ele exibe uma atitude piedosa, oferece sacrifícios aos deuses e executa rituais de purificação. Em outras palavras, a revolução teórica do sábio estóico é acompanhada de atitudes extraordinariamente conservadoras, que eram estranhas por completo aos cínicos. No entanto, ainda há mais que isso. Outros filósofos, como já comentamos, haviam conseguido estabelecer novos sistemas que resguardavam de forma eficaz a religião popular. Esse foi o caso das Idéias platônicas, da Causa Primeira aristotélica e do Lógos estóico. Mesmo os epicuristas, com a sua filosofia materialista, deram um jeito de manter um espaço para os deuses, que eles situavam no intermundia, como se o homem tivesse uma necessidade de preservar de qualquer forma o seu conceito divino.
No caso dos cínicos, porém, não vemos nada desse gênero. Eles não tinham nem uma imagem racional do mundo, nem uma concepção providencialista da natureza. Eles não achavam que o universo havia sido criado para o benefício do homem ou que houvesse um mistéiro do mundo esperando para ser descoberto. Devido a isso, seria possível entender a sua visão das coisas como um tanto mundana, embora ela seja, na verdade, essencialmente realista. Eles compreendiam a artificialidade do mundo e estavam resignados a ela. Aceitavam a condição humana, ainda que, ao mesmo tempo, estivessem plenamente conscientes de que ela não era particularmente desejável. Em outras palavras, submetiam-se às leis da natureza, firmemente decididos a rejeitar toda ilusão e, assim, todas as tentações chamadas de civilização. Desse modo, encontramos neles um desejo intenso de lucidez, e de pregar essa lucidez. É por isso que eles saíam às ruas e aos mercados, insistindo que o homem deve voltar para a natureza e que não é difícil fazê-lo. Mas eles recusavam totalmente a admitir o homem - cujos limites conheciam muito bem - devesse abandonar o seu verdadeiro lugar e a sua verdadeira natureza e se entregar nas mãos do transcendente.
CAZÉ, Goulet, M.-O. Religião e os Primeiros Cínicos. In__: CAZÉ, Goulet & BRANHAM, R. Bracht, Org. Os Cínicos: O Movimento Cínico e o seu Legado. Edições Loyola: São Paulo, 2007. pg. 79-80
No que se refere ao sábio estóico, embora ele, como seu colega cínico, não se absenha de criticar a religião popular, ainda assim ele evita se dissociar por completo das crenças da maioria das pessoas. Por conta disso, ele explica e desculpa o antropomorfismo e consegue resguardar o politeísmo, embora ao mesmo tempo exiba uma clara tendência ao monoteísmo. Ele exibe uma atitude piedosa, oferece sacrifícios aos deuses e executa rituais de purificação. Em outras palavras, a revolução teórica do sábio estóico é acompanhada de atitudes extraordinariamente conservadoras, que eram estranhas por completo aos cínicos. No entanto, ainda há mais que isso. Outros filósofos, como já comentamos, haviam conseguido estabelecer novos sistemas que resguardavam de forma eficaz a religião popular. Esse foi o caso das Idéias platônicas, da Causa Primeira aristotélica e do Lógos estóico. Mesmo os epicuristas, com a sua filosofia materialista, deram um jeito de manter um espaço para os deuses, que eles situavam no intermundia, como se o homem tivesse uma necessidade de preservar de qualquer forma o seu conceito divino.
No caso dos cínicos, porém, não vemos nada desse gênero. Eles não tinham nem uma imagem racional do mundo, nem uma concepção providencialista da natureza. Eles não achavam que o universo havia sido criado para o benefício do homem ou que houvesse um mistéiro do mundo esperando para ser descoberto. Devido a isso, seria possível entender a sua visão das coisas como um tanto mundana, embora ela seja, na verdade, essencialmente realista. Eles compreendiam a artificialidade do mundo e estavam resignados a ela. Aceitavam a condição humana, ainda que, ao mesmo tempo, estivessem plenamente conscientes de que ela não era particularmente desejável. Em outras palavras, submetiam-se às leis da natureza, firmemente decididos a rejeitar toda ilusão e, assim, todas as tentações chamadas de civilização. Desse modo, encontramos neles um desejo intenso de lucidez, e de pregar essa lucidez. É por isso que eles saíam às ruas e aos mercados, insistindo que o homem deve voltar para a natureza e que não é difícil fazê-lo. Mas eles recusavam totalmente a admitir o homem - cujos limites conheciam muito bem - devesse abandonar o seu verdadeiro lugar e a sua verdadeira natureza e se entregar nas mãos do transcendente.
CAZÉ, Goulet, M.-O. Religião e os Primeiros Cínicos. In__: CAZÉ, Goulet & BRANHAM, R. Bracht, Org. Os Cínicos: O Movimento Cínico e o seu Legado. Edições Loyola: São Paulo, 2007. pg. 79-80
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