Por Uma Mística Imanente

Por Breno Lucano


O texto que se segue não é apenas uma resposta às indagações de meu amigo Alex Amorim quanto ao meu post - referido abaixo - no Facebook, mas também uma reflexão, uma tomada de consciência existencial quanto à precariedade humana.

"Já mandou deus para a puta que pariu hoje? Vou ensinar: foda como uma vadia encima do altar de uma igreja. Ejacule no sacrário. Defeque na âmbola. Cuspa na patena. Limpe a bunda gozada com o corporal." Breno Lucano



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"O desprezo pelo corpo é a consequencia da 
insatisfação  que se sente com relação a ele."  

Nietzsche, Fragments posthumes, 7, 150


Meus leitores e aqueles que me seguem há algum tempo estranharão o título Por Uma Mística Imanente. Ao meu ver o termo mística remete apropriadamente meu ideal de apropriação do real, como protagonista de um romance trágico da história e do mundo. 



Para os pouco esclarecidos, toda e qualquer mística remete à verticalização, ao além e a transcendência, para um mundo que não vemos e nunca veremos sob a alegação de deixar de ser mística. Proponho aqui novo conceito, nova visão. Mística passa a ser não mais uma subida aos céus, mas uma adesão intransigente e radical ao que é e pertence ao mundo, aos homens e ao ambiente. Subida não ao além, mas no âmago das potencialidades, no cume da existência e seus dilemas, no ápice do material e suas proposições, no coração daquilo que nos faz homens.  Não perde a capacidade de verticalizar, embora seu direcionamento seja alterado. E essa verticalização que tende ao sublime e ao cortez diz respeito ao mesmo tempo em que é imprescindível a todos os homens pós-modernos.

Essa mística pressupõe o heroísmo e à perda do encantamento do mundo. Ou, em outras palavras, de um mundo sem deus, magia, presságio, sobrenatural. De um envolver-se com a sua volta, de assimilar-se ao outro numa busca constante por identidade.

Aqui caímos num dilema. De que modo associar heroísmo-virtude a um mundo sem deus? Desde as Luzes, época marcada por queda de reis e dogmas religiosos, essa questão é devidamente debatida. Combatida por alguns, defendida por outros. Desnecessário dizer que a palavra "ateu" tem gênese etimológica grega (átheos), porém, é importante saber que ela foi empregada na Antiguidade para difamar e condenar à morte personalidades como Sócrates, por exemplo. Mais tarde, em 1559, Jacques Amyot, traduzindo Plutarco, mais exatamente onde ele faz alusão ao filósofo Teodoro, interpretou a palavra "ateísta" como sinônimo de "descrente". 

No mundo das idéias ateísmo surge como imprecisão conceitual. Tudo quanto fosse contrário à fé ortodoxa ou os costumes eram assim entendidos. Para se ter uma idéia da imprecisão, da utilização indiscriminada e da gravidade da ofensa que acompanha as palavras ateu e ateísta, o jesuíta Garasse declara que na Paris do séculoXVII havia quarenta mil "ateus", julgando como tais os céticos, os libertinos, os livre-pensadores, os alquimistas, os cabalistas, enfim todos os que destoavam dos paradigmas reflexivos e morais dominantes. Em outro momento, Garasse representa Lutero como ateu. 

Esquecidos, banidos e trancafiados nos frios calabouços de algumas bibliotecas escusas em alguns cantos da Europa, os autores ateus foram vistos com suspeitas. Isso ocorre porque deus é sempre entendido como único expoente de moralidade, civilidade e ética. O que dizer de um Epicuro hedonista em meio a uma Europa católica? Vasão ao corpo, às pulsões, aos desejos, valorização do prazer contra o ideal ascético cristão. Mas não apenas isso: a constituição de um mundo atômico, destituído de sacralidade, aglomeração fortuita de partículas que formam o real. Deuses? Epicuro nunca os baniu de sua cosmologia: mas eles eram feitos de átomos. Sade? Não é preciso lembrar que muitos de seus escritos foram clandestinos, escritos durante suas variadas prisões sob alegação de perversão dos costumes e ateismo. Seu crime: entender um mundo, mais uma vez, dessacralizado, caótico e perverso. No campo da literatura são comuns as prescrições: ejacular no rosto de uma jovem; urinar sobre o sexo de um padre; engolir o catarro de uma velha; beber a urina de um acamado imundo; masturbar-se em cabelos, sobre um cu ou qualquer outro membro; arrombar um cu, uma boceta; dissimular um corpo, exceto uma parte; gozar com fedores - peidos, excrementos, suor; engolir uma decocção de cascão, de sujeira, de merda humana marinada em champanhe; comer as secreções fermentadas acumuladas entre os dedos do pé; tragar os arrotos de uma mulher que não para de produzi-los; açoitar com diversos objetos: chibatas embebidas em matéria fecal, em vinagre, chicote com correias de aço, azorragues com pontas encurvadas; ser amarrado a uma escada e depois ter os testículos traspassados or agulhas de ouro; embeber os pelos com líquido inflamável e pôr fogo; queimar o sexo com a cera de uma vela; matar e sodomizar o cadáver; fazer uma mulher abortar; ... A criatividade sadiana é extensa.

Em todos os casos, a literatura infame envereda num único tema: a perda do Paraíso. Nesse sentido, recomendo a leitura de Deus e o Estado, de Bakunin, onde o tema da revolta contra deus é apresentada de modo essencialmente metafísico. No interior da teodicéia maniqueísta cristã, temos a figura de Jeová como figura de absoluta bondade, sabedoria e perfeição. O que faz o autor é demonstrar exatamente o contrário, revelando um Jeová mesquinho, injusto, imprudente, carente de atenção e afeto. Tudo quanto era felicidade aos olhos religiosos torna-se prevaricação aos olhos de Bakunin. Em contraste ao déspota divino, é valorizado o herói Satã. O Paraíso é mostrado como o próprio Inferno, e a queda, corolário de uma revolta metafísica, é valorizado como o ponto de partida de um processo emancipatório. 

Satã é a personificação da razão, da alteridade em relação à fé. Onfray vê na figura de Satã "a primeira e a exemplar revolta", aquela "que experimenta o poder de dizer não". E dizer não não indica não fazer o que não se quer, fórmula rousseauísta de liberdade. Tal divisa, mais do que satânica, é o "imperativo categórico" do rebelde metafísico. Não é expresso como a origem do Mal, o semeador do pecado, mas é aquele que, pela primeira vez desde a origem dos tempos, disse não a deus. E mais. Propôs aos homens a consciência de são feitos de corpos materiais - não de corpus angelicus, como os anjos -, que possuem a capacidade de escolha - contra o determinismo implacável de deus -, que, longe dos conceitos de pecado e virtude, muitas coisas lhe são permitidas além de orar por uma salvação e por um mundo que nunca conhecerá senão quando morrer. 

Em suas faculdades genésicas, deus cria um mundo de antimatéria, de perfeição e beleza. Muito conveniente, por sinal. Nas terras áridas do Oriente Médio, sem qualquer perspectiva de água ou vida, os homens criam um deus que protagoniza um mundo de fartura hídrica e alimentar, de clima ameno, mil virgens, uma terra onde mina leite e mel. Mas esse mundo não será permitido para todos - deus não é comunista! É necessário que os eleitos sejam escolhidos, e essa eleição é medida em atos de fé, absoluta devoção e total capacidade de inquestionar. Refletir indica perda de fé e, portanto, o Inferno. Nesse momento surge a figura de Satã, o ente malígno que ao dizer não, impôs o pecado ao homem. E o que indica esse não? Indica justamente a reflexão no que é essa fé em que os homens depositam suas esperanças, como dirá Feurbach. Indica também um caminho místico imanente onde não se precisa esperar a felicidade futura, tendo em vista as desgraças do presente. 

A Revolta Metafísica satânica e infame que proponho caminha outros campos. Indica o sublime da vida no tocante ao real, condizendo a existência com todas as suas potencialidades e capacidades. Indica o fruir do que fora proibido por deus a saber: a inteligência, a possibilidade de dar a si o melhor destino, de criar novos estilos, de se conduzir segundo suas vontades e desejos. Desejar o inverso do Paraíso - ou o Inferno, o mundo de matéria no lugar do de antimatéria, o Anti-Reino no lugar do Reino - é o ofício último das Luzes, das Ultra-Luzes. Da busca por significado num mundo desencantado, sem deus, sem esperança.


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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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