Sobre a Morte e o Morrer

Por Breno Lucano

Terminara o show. Meus colegas de turma da URFJ arrumaram seus pertences e fomos para casa após minha exposição sobre a morte. Espera-se que numa graduação de saúde, como medicina, fisioterapia ou enfermagem, como no meu caso, soubéssemos tratar adequadamente esse assunto. Mas não sabíamos. Hoje, quase dez anos de formado, pensei em como escrever este texto e chegara o momento.

Todos nós temos medo de morrer. Essa afirmação é cada vez mais clara à medida em que, numa conversa com a natural arrogância médica, constatamos que evitamos essa palavra mágica dos discursos, inclusive os acadêmicos. Perdemos a capacidade de sentir, de se compadecer, de sofrer com aquele que sofre e de fazermos algo de fato por alguém que está morrendo.



Meus próprios colegas tinham dificuldade com esse assunto. Claro que, com minha enorme admiração por Elisabeth Kubler-Ross, tal assunto se tornou um pouco mais familiar. Mas apenas para mim. Pensei até em escrever sobre o morrer na monografia, plano que não pude levar adiante.

A morte é um absurdo! E esse absurdo, num sentido teológico, se faz presente pela incessante insistência na cura de um câncer ou de uma leucemia por obra divina. Deus, o cordeiro que dá a vida, detesta a morte e faz tudo para impedir que aceitemos este que é a maior lição que teremos e que temos, se considerarmos que morremos um pouco a cada dia.

Deus é aquele monstro que preserva a vida após a vida, o sobrenatural, o mágico, a eteridade de um mundo que se concretizará no juízo final, no fim dos tempos. Com isso, evitamos o mundo imanente, o mundo em que vivemos, existimos na história e morreremos. O corpo é um receptáculo do mal, da falha dos sentidos, do imundo sensualismo que nos lembra que somos animais mais que seres angelicais. Apesar da ciência, em seus pressupostos empíricos, negar tal atitude, a mentalidade é integralmente religiosa. E apenas saberemos lidar adequadamente com a nossa finitude quando afirmarmos que nós morreremos um dia e o mundo continuará, como uma formiga que pisamos na rua, alheia ao mundo todo aqui fora que continua.

Minha primeira experiência com a morte foi entorno de 2001. Cilá possuía câncer de vulva, metastasiado para diversos órgãos. Naquele dia fui encarregado de prestar assistência de enfermagem a uma senhora já bem idosa que nunca havia feito o preventivo do câncer. Após a mutilação de uma cirurgia de vulvectomia, aquela corajosa senhora fora submetida a uma urostomia - já que sua bexiga havia sido removido em decorrência do tumor - e uma colostomia - já que a parte final do intestino fora removida em decorrência do câncer. Fazia uso de morfina regularmente para aliviar as dores, o que provocava dispneia, dificuldade em respirar. Estava inconsciente, embora até o dia anterior estivesse conversando, rindo, brincando. Após o  cuidado com aquele corpo enfraquecido, fui embora prometendo retorno no dia seguinte para a visita. Mas ela não estava mais lá. Tinha morrido naquela mesma noite, sozinha numa cama de hospital, com pessoas estranhas, após ter a notícia que seu marido a traía e possuía filho fora do casamento.

Geralmente a equipe de saúde, particularmente a enfermagem, odeia o horário de visita de hospital. Mas era justamente o horário que eu mais gostava. Num manicômio, onde trabalhei algum tempo, esquizofrênicos andam de lá para cá, sem nada que os estimule, a esmo. A visita dos familiares e daqueles que são importantes para eles os dá força para suportar a dor, o sofrimento e a solidão. E, então, recebi a notícia de que S. receberia alta finalmente, após vinte anos de internação. Os assistentes sociais fizeram o máximo para encontrar a família e dizer o quanto S. estava ansiosa para ir para casa. Na véspera de sua alta, ela sofre um ataque cardíaco, morrendo em meu plantão.

Estórias assim nos fazem perguntar o sentido da vida. Como é possível que alguém morresse após vinte anos  num inferno na terra como num manicômio, ou num hospital sujo, impessoal, gélido? Algumas pessoas recorrem à religião para resolver os conflitos gerados por sua fragilidade. Entendo isso. Mas nunca entendi e nunca entenderei como pessoas podem morrer numa UTI com pessoas desconhecidas, com tubos, infusões venosas e procedimentos afins. Temos tudo, menos uma pessoa.

Kubler-Ross dizia que morrer é a maior de todas as experiências, a que nos faz nos conectar com a humanidade. Ela nunca foi religiosa, mas sua intuição humanitária na Polônia pós-guerra, sua querida boneca  negra, sua adoção de crianças com AIDS nos anos oitenta e sua intensa busca pelo conforto sempre me inspiraram e ainda me inspiram. E espero, sinceramente, que todos a conheçam como eu.

Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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