Entrevista com Onfray - Falsa Ciência no Divã

FILOSOFIA: A Psicanálise é a ciência de uma época que não existe mais?
Michel Onfray: Será que chegou a existir?  Portanto, sem o saber, cada psicanalista seguiu a pista de Freud sem saber exatamente como: nesse caso, projetando no inconsciente do outro o seu próprio inconsciente. Fiquei atônito, após o lançamento do meu livro, ao constatar como o conhecimento real e verdadeiro sobre Freud é nulo, e quando freqüentemente as pessoas que se dizem freudianas jamais leram a obra completa do seu guro. E se satisfazem  por uma vulgata com impreciso conhecimento de alguns textos, um gênero de assimilação que ainda prospera após um século.


FILOSOFIA: Como fica nesse contexto o papel dos considerados historiadores e disseminadores da disciplina?
Onfray: Certa historiadora francesa da Psicanálise, autoproclamada "historiadora da Psicanálise", e que leva a milícia freudiana em ordem atrás dela, se contenta, por exemplo, a escolher a vulgata em prejuízo de um conhecimento verdadeiro do texto. Nesse contexto, trabalha-se a partir de um livro que não existe, mas que poderia ser chamado "A Psicanálise para os desprovidos de inteligência" e que dará em um dia as dicas ao psicanalista para exercer a Psicanálise. Com efeito, essa impostura está a caminho de desaparecer da França.



FILOSOFIA: A Psicanálise ainda terá lugar ao curso deste século?
Onfray: Não, pelo contrário, terá cada vez mais, longe de toda aparência de doutrina e de teoria digna desse nome, uma imagem de disciplina esotérica. Passando-se por útil, se legitimará com um discurso falso sábio, mas na verdade religioso, a ladainha habitual dos curandeiros.

FILOSOFIA: Freud teria usado idéias de filósofos sem devidamente creditá-las?
Onfray: O Schopenhauer de O Mundo como Vontade e Representação, o Hartmann de Filosofia do Inconsciente e, sobretudo, a obra completa de Nietzsche, pela qual Freud tinha uma aparente ojeriza que dissimulava uma autêntica fascinação. A prova: quando ele parte para Londres no exílio, fugindo do nazismo, leva consigo a obra completa do filósofo. Freud, que se projetava como um científico na linha de Copérnico e Darwin, nunca foi mais do que um filósofo, isso e nada mais, um homem de letras no espírito de um Goethe. Tudo isso foi suficiente para creditá-lo do talento de inventar um mundo, mas não de ter criado uma ciência suscetível de sonhar e de curar.

FILOSOFIA: Elisabeth Roudinesco teria convidado você para um debate televisivo logo após o lançamento do livro, e sua resposta foi uma negativa, segundo publicou a mídia francesa. 
Onfray: Ela ainda não tem o poder de convidar quem ela quer para falar na televisão. Ela, portanto, não me convidou para ir a esse debate. mas isso vai bem dentro da sua estratégia de deixar crer que ela monta os balcões da televisão francesa.

FILOSOFIA: Em sua opinião, as redes sociais (Twitter, Facebook, Orkut) funcionam atualmente como "analistas coletivos"?
Onfray: Não, é um local de descarrego, a oportunidade de se livrar da raiva, do fel, do desprezo, mas também de exibir o ego, de praticar o narcisismo. Também de praticar aquilo que não se é (escritor, crítico, pensador, jornalista, etc.), de endossar um disfarce, como as crianças, que permita argumentar a não realização do mundo real em favor de um universo virtual que não obedece outra lei senão a do capricho pessoal. Nada a ver com a Psicanálise.

FILOSOFIA: O que são as mídias sociais para você?
Onfray: Um gênero de "cloaca máxima" como existia na Roma antiga para drenar o esgoto, um canal destinado a conduzir as imundices de uma sociedade e de uma época insuficiente para produzir o que seria uma análise coletiva. Para fazê-la, prefiro que se leia e que se reatualize Psicologia da Massa e Fascismo, de Wihelm Reich.

FILOSOFIA: Como você se sente ao ser um filósofo e ao mesmo tempo uma celebridade, algo que acontece com outros intelectuais da França?
Onfray: Eu traço meu caminho como ele se dá: conhecido, desconhecido, pouco conhecido, pouco importa. Faço um trabalho de homem livre em um mundo que não sabe mais o que é liberdade. Se meus livros vão bem, tudo bem; se eles vão menos bem ou nada bem, isso é sem importância. O que defendo é poder ficar de cabeça erguida ao fazer um trabalho filosófico digno desse nome. A celebridade, como o dinheiro e as honrarias, são coisas sem importância.

FILOSOFIA: Por qual razão você criou a Universidade Popular de Caen?
Onfray: Para tirar a filosofia do duplo gueto universitário elitista e liberal que surfa para a demanda filosófica para produzir uma oferta execrável geralmente vinda de agregados normalistas ou jornalistas que redigem bobagens destinadas a grandes tiragens. Eu quero a qualidade universitária sem o gueto e a liberdade de praticar filosofia sem o mercado liberal que a acompanha.

FILOSOFIA: Quais as principais orientações educacionais da universidade?
Onfray: Há uma dezena de seminários que vão da Filosofia para crianças ao feminismo, passando por economia, jazz, arte contemporânea, psicanálise (sim, porque sou partidário do debate, ao contrário da mulher já citada) e meu curso de contra-história da Filosofia.

FILOSOFIA: Quem pode estudar nessa instituição?
Onfray: É aberta livremente a todos, sem inscrição, sem diplomas, sem requisitos, sem outro desejo a não ser o de querer filosofar.

FILOSOFIA: Quem financia o funcionamento da universidade?
Onfray: Somos beneficiantes, o orçamento para pagar as despesas dos palestrantes provém da região da Baixa Normandia, onde a sede da instituição está localizada.


FILOSOFIA: Qual a sua opinião sobre o sistema de educação adotado em várias escolas no mundo todo, reflexo ainda do que era no início do século passado?
Onfray: Essa escola não corresponde mais àquilo que deveria se fazer, ainda se ensina como se estivéssemos no século XIX. Para aqueles que querem transpor essa situação, não o fazem tão melhor: eles ensinam como se a verdade do mundo estivesse na sua realidade imediata, celebrando a modernidade tecnológica, a internet, o computador, as novas tecnologias como horizonte da pedagogia pós-moderna. Por minha parte eu creio no livro e na meditação do texto, na escritura, em seu exercício e no seu domínio. Houve o Maio de 1968, é uma coisa a ser integrada, mas não é preciso nem restaurar a ordem anterior, nem crer n esquema de ficção científica que leva atualmente alguns pedagogos a pensar que são modernos.

FILOSOFIA: Qual seria o modelo de ensino ideal para ser utilizado atualmente?
Onfray: É preciso se recordar que o essencial se encontra na relação do professor com seu aluno. A importância da qualidade existencial daquele que ensina é considerável: tudo passa pelo mediador, que é quem ensina. A máquina não faz nada, a tela não substitui a vibração íntima que se manifesta no belo ato de aprendizagem.

FILOSOFIA: Como na época de Adão e Eva, o conhecimento continua a ser "fruto do pecado"?
Onfray: De fato, pode-se dizer que o saber é um poder. E o poder vigente não gosta daquele que pode ser um contrapoder. O poder gera um poder contrário bem pouco nocivo para dar aparência de tolerância, de abertura de espírito, de grandeza de alma. Mas ele não tolera aquele que não gerou. Um verdadeiro saber é crítico e, de fato, tem sempre relação com o diabo, o demônio. Lúcifer, eu retomo aqui, significa, etimologicamente, o "portador da lua". Lúcifer, de Eva à Filosofia dos iluministas, é o homem que gosta de saber, e , assim, não gosta de obedecer, de se submeter.

FILOSOFIA: Você critica bastante as grandes religiões. Qual é a passagem da Bíblia (ou de qualquer outro texto religioso) que o agrada?
Onfray: O Eclesiastes que diz a verdade da existência: "tudo é vaidade e vento que passa".

FILOSOFIA: Eu percebo um movimento na França para tentar se aproximar de um modelo de liberalismo anglo-saxão, particularmente após a chegada de Nicolas Sarkozy ao poder. Isso não é temeroso, não implica em uma perda da identidade do país?
Onfray: O país já perdeu sua identidade faz tempo. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o "modelo de vida americano" foi imposto de maneira insidiosa com a cultura de nossos libertadores após anos de ocupação nazista, e, não raro, com a colaboração francesa em favor dos inimigos. Literatura americana, jaza, uísque, cinema de Hollywood, modernidade tecnologica, cigarros, publicidade... Sartre e os seus mostram como essa fascinação preparou ideologicamente o terreno para o que se seguiu. Hoje a Europa é um fenômeno americano.

FILOSOFIA: Você acredita numa mudança de valores mundiais com a reconfiguração mundial que a decadência do poder hegemônico dos Estados Unidos poderá provocar? E também a emergência de potencias como o Brasil, a China e a Índia, por exemplo?
Onfray: Não, a globalização se fez no seio do capitalismo liberal, é preciso se render a essa evidencia. O que nos resta é resistir combatendo para que a derrota não avance, mas é preciso levá-lo em conta, por elegância desesperada, mas lúcida. O barco afunda, é preciso preservar o sorrido e, como no caso do Titanic, escutar os músicos tocar o movimento de quarteto e assistir ao espetáculo do naufrágio sem rir nem chorar.

FILOSOFIA: Qual personagem será seu próximo alvo de crítica?
Onfray: O próximo livro será um elogio - visto que esse livro sobre Freud me forçou a ter a companhia desse personagem detestável. Mas não poderia evitá-lo no trajeto de contra-história da Filosofia que sigo após oito anos na Universidade Popular de Caen. Trata-se de um livro que vai celebrar a política libertária de Albert Camus.




Entrevista concedida à Revista Filosofia
Ano V - N 52


Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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