Por Breno Bastos
TRABALHO APRESENTADO À PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO, PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA, COMO REQUISITO AO CURSO DE MESTRADO EM FILOSOFIA (SET/2007)
STOÁ E A IDADE DO OURO:
O RETORNO AO MITO DA CRIAÇÃO DO HOMEM
Sumário
1. INTRODUÇÃO
2. LÓGOS E HISTÓRIA
3. STOA E IDADE DO OURO
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Alexandre, o Grande morreu, e, com ele, o sonho da democracia, símbolo maior da antiguidade clássica. A glória de Atenas foi suplantada pela Macedônia que, aos olhos do dileto aluno de Aristóteles, deveria se estender, se estender, se estender… Povos e etnias deveriam se unificar, a moeda deveria ser única. O caráter expansionista da Macedônia tinha por objetivo a neutralização da diversidade e potencialização da unidade.
A queda da liberdade política do grego exerceu forte impacto social e somente sob esse prisma o surgimento dos sistemas do helenismo devem ser entendidos. Imediatamente homens da estatura de Antístenes e Epicuro surgem para resolver novos problemas, explicar que homem é esse que surge num panorama social hostil e re-pensar novas estruturas de Estado e de Cidadania. Nesse contexto, surge a figura de Zenão de Cício, discípulo de Crates, o cínico, de quem se inspirou para pensar seu novo modelo de polis.
O Estoicismo foi um dos grandes sistemas do helenismo. Contudo, se Zenão e Crisipo competiram com o Jardim pela legitimação de suas teses, o fizeram por vias diferentes. Não professaram a fuga da vida pública, como Epicuro, nem tão pouco criticaram os padrões culturais e sociais de seu tempo. No Pórtico, o conceito de natureza adquire uma dimensão teológica, perfeita demais para um homem que se vê numa sociedade em crise política. As leis, a intuição de certo e errado, e a justiça existem. Mas eles não se encontram mais na pólis de Péricles e, igualmente, também não se encontram na suscerania macedônica. Lei, justiça, ética, psicologia: conceitos que se integram e, ontologicamente, se associam à natureza, concedendo-lhe teor divino, providencial, mítico. E distante.
Mesmo com as dificuldades de uma sociedade que inutilmente luta para não perder sua identidade política, cultural e existencial, Platão e Aristóteles continuarão a ser lidos. E, com eles, as grandes narrativas de Homero e Hesíodo, que contribuíram igualmente para a sustentação e organização da antiguidade arcaica, clássica e, agora, helena.
Os antigos morreram, mas não foram esquecidos. E Zenão, mesmo de origem semita, leu a todos e se afeiçoou, possivelmente, a Hesíodo. O reflexo de seu mito da Idade do Ouro, em Os Trabalhos e os Dias, pode ser encontrado implicitamente nas teses do Pórtico. Com efeito, a semi-imortalidade, a beleza e a completa ausência de males, signos desse homem perfeito habitante da cidade perfeita, repleta de deuses, parecem se assemelhar com o modelo de Estado pensado por Zenão.
Reais nos poemas hesiodianos e na astuta dialética de Zenão e Crisipo, esse homem luta para existir também na sociedade historicamente formada. Em confronto com o sistema criado pelos homens, o cidadão zenoniano e sua cosmópolis sedimentam uma nova discurssão sobre a dicotomia existente entre a sociedade helena que nasce e uma sociedade criada pelos deuses, além do tempo.
Este trabalho tem por objetivo demonstrar por quais meios o discurso estóico, com todas as suas aparentes ambigüidades e dificuldades doxográficas, explora e teoriza a sociedade que nasce com Alexandre Magno, utilizando o Mito da Idade do Ouro como terreno de discurssão e a eterna busca humana por suas origens.
LÓGOS E HISTÓRIA
A morte prematura de Alexandre Magno deixava um panorama político não-consolidado. Os valores tradicionais pós-democráticos, estranhos no cotidiano do homem comum, continuavam a ser respeitados, contrastando, porém, com novas realidades. Os cidadãos se tornam súditos, e todo o exercício político do homem grego é reduzido. Alheio ao cidadão, o novo poder é distante e tutelar. Personalizando o poder, os diádocos, rodeados das instituições que lhe são necessárias, eventualmente buscam nos filósofos a arte do bem falar e do bem governar: recordemos de Platão e Dionísio de Siracusa e Aristóteles e Alexandre Magno.
O homem helenístico, exposto ao desalento após a queda da democracia, é o principal tema ao redor do qual as teorias se movem. Tal com o alvorescer do ceticismo, do cinismo e do epicurismo, o estoicismo não fugirá a essa nova perspectiva teórica e apresenta uma nova resposta ao homem de sua época, resposta que, considerando a universalidade da problemática helenística e a riqueza reflexiva da escola, terá perenidade.
Dada a confusão de um novo período histórico que nasce, o Pórtico pensa uma natureza que se revela por uma reorganização de todos os valores vigentes para tornar possível a emergência de um novo ánthropos. Physis e Lógos, dois campos de reflexão herdados da tradição platônico-aristotélica, se confundem. A natureza passa a ser pensada no âmbito de sua legalidade, racionalidade e sacralidade, de modo a servir como novos parâmetros para o agir.
Sem a presença das divindades olímpicas, a physis é abstrata em sua sacralidade e alberga em si a universalidade do homem quanto ao uso do lógos. Pohlenz[1], citado por Reale (1994), recorda que o lógos carreia a noção de uma rigorosa ordem no universo através do devir e nos fornece elementos de compreensão do significado do mundo e da realidade espiritual do homem. No Pórtico, o agir, o ser e o pensar estão associados na noção de igualdade, marca da ordem universal.
O lógos, identificando-se com a physis, possui um princípio unitário que se desdobra no novo homem que surge. A partir do lógos-physis, o mundo assume sua sacralidade e o homem deixa de ser um súdito do império macedônico e resguarda para si uma nova cidadania, um novo destino, e um novo sentimento de unidade.
Em face de sua natureza cognoscente, o homem, partícula do lógos universal, forma uma só comunidade, de iguais. Onde quer que estejam, discutem, aprendem e interagem entre si com a compreensão de que se integram num mesmo modo de ser que está em conformidade com a physis, uma vez que os limites políticos não correspondem à geografia cósmica.
Zenão aprofunda o genérico através da convicção do homem enquanto cidadão do mundo; mas também preserva sua individualidade e aquilo que existe de mais essencial. A physis determina e estabelece nómos, durável, igualitária e racional, que entra em frontal desacordo com aquela engendrada pelo oportunismo dos poderosos. A historicidade existe tão somente enquanto um reflexo destoante da razão universal.
Vejamos algumas notícias sobre esse novo modelo de politéia:
“Zenão (…) pregava a comunidade de mulheres e proibia a construção de templos, tribunais e ginásios nas cidades; também o censuravam porque escrevia a propósito da moeda que “não se deve achar necessária a introdução da moeda, nem para troca nem para andar no exterior”, e porque determinava que homens e mulheres usassem as mesmas roupas…” [2] (DIÓGENES LAÉRCIO, 1977)
“… o mundo é uma verdadeira cidade por oposição às cidades presentes, …” [3] (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, citado por GAZZOLA, 1999)
“… (para os estóicos) a Megalópolis é o mundo que usa de uma mesma constituição (politéia) e de uma mesma lei. A razão (lógos) da natureza é coersiva do bem agir e proibitiva do mal fazer…” [4] (FILOMENO DE ALEXANDRIA, citado por GAZZOLA, 1999)
Cidade e natureza, dois conceitos que aparentemente se encontram dissociados, na Stoa engendra uma unidade. E essa unidade revela o spoudaíos como único cidadão possível, por ser capaz de, através do lógos, possuir a divindade no pensamento. Todos os cidadãos da cidade de Zenão são amigos e parentes, o que inviabiliza a existência de gregos e bárbaros. Os templos são renegados, de modo que o sagrado seja preservado em si mesmo, ao invés das exterioridades. Monumentos outros, como ginásios e tribunais, também não devem existir. Da mesma forma a moeda, signo do comércio e das diferenças entre os homens, também não encontra espaço nessa nova cidade.
Zenão inovou. E, por isso, por sua suposta posição ingênua, marcada pelo despropósito e pelo apolitismo, sofreu variadas críticas. Entretanto, por sua sutil dialética, o cipriota nos faz refletir sobre o que é, para o homem contemporâneo, ser político. Em seus próprios próprios dogmas, ética, política e razão estão unidos, o que faz desse novo modelo de politéia algo perfeito, sagrado, coerente e, acima de tudo, justo.
Na Stoa, a instituição política não encontra paralelo histórico porque ela se fundamenta na ordem cósmica. O sábio não é apenas cidadão da cidade em que nasceu. Sua cidadania é aquela estabelecida pela natureza, de tal modo que Marco Aurélio confessará que, enquanto Marco Aurélio Antonino, ele é um romano; enquanto homem, é um Cidadão do Mundo[5]. Num meio capaz de determinar fortemente o status do homem na sociedade, onde aquele que não é grego é necessariamente bárbaro, onde aquele detentor de todos os direitos civis concedidos pelo Estado se opõe ao estrangeiro, devidamente marginalizado porque não partícipe da cultura grega, o Pórtico determina outro modelo de eticidade e de política. Violentamente a Stoa se opõe a uma organização do mundo dividida em cidades e povos, cada qual com leis particulares, e vendo nos outros estrangeiros e inimigos. Brun (1986) relata sobre um lugar onde todos os homens são cidadãos da República de Zeus, e vivem unidos sob uma lei comum, como um rebanho guiado por seu pastor.
No período pós-alexandrino existe uma tendência de se estruturar o rei perfeito, aquele que, pela extrema sabedoria, possa comandar bem os outros porque é o melhor dentro eles e, por isso, possa unificar uma Grécia decadente, com grave crise econômica e social. Constrói-se o imaginário de um homem com o poder divino de governar, alguém que, sendo beneficiado pelos deuses, dispõe de atributos que o capacitam para o comando.
Para Gazolla (1999), o spoudaíos, embora devidamente divinizado, não parece ser esse homem com a missão divina de governar. A descrição do homem superior pode coincidir com a concepção zenoniana do cidadão perfeito, mas dela se afasta à medida que se reflete sobre sua homologia com a cosmópolis.
A cidade histórica não pode ser a do spoudaíos. Tanto a cosmópolis quanto o cidadão de Zenão não foram construídos para a sua própria efetivação, mas para fins pedagógicos. Continuamente, é afirmada a importância do saber para agir, e agir de acordo com a melhor escolha possível. Entrando em dissonância com o lógos, o homem se afasta da cosmópolis e se torna um anti-cidadão, um phaulôs.
Encontramos aqui dois blocos opostos: ao mesmo tempo em que a cidade histórica e o cidadão ordinário são absolutizados em seus erros e condenados para sempre em seus vícios, o sábio e a cosmópolis indicam o paradigma do pórtico.
Considerando a própria estrutura da cosmópolis e observando o perfil psíquico e ontológico do sábio, os estóicos afirmam que não sabem se ambos – a cidade e o cidadão – já existiram ou existirão na história. Mesmo homens como Sócrates, Antístenes e Diógenes de Sínope apenas conseguiram uma aproximação do télos estóico sem, contudo, nunca alcançá-lo. E nunca alcançaram em função da utopia de seu próprio sistema. O estóico pretende, pela grandiosidade de suas teses, chamar a atenção do homem histórico, demasiadamente consumido pelas instituições criadas por ele mesmo.
Constantemente criticado por Plutarco em razão de seus supostos excessos[6], a Stoa medita na distancia da cosmópolis e da cidade historicamente constituída. Pela grandeza de sua estrutura, são evidenciadas todas as injustiças, limitações e desigualdades produzidas pela politéia ordinária, ao mesmo tempo em que conscientiza os homens de sua fragilidade e temporalidade.
Muitos estóicos experimentaram o poder. Lembremos, a título de exemplo, da amizade entre Panécio e Cipião Emiliano e da admiração de Posidônio, professor de Cícero, por Pompeu. Mas, se quisermos frisar com mais ênfase as relações existentes entre o Pórtico e o poder, não podemos deixar de mensionar o conturbado Sêneca, tutor do jovem Nero, Musônio Rufo, eqüestre que fora exilado várias vezes, e, principalmente, o imperador Marco Aurélio. Os estudiosos são unânimes ao afirmar que o governo desse césar coincindiu com os tempos mais afortunados que Roma conheceu, de modo a conferir-lhe o título de último dos Cinco Bons Imperadores. Gibbon (2003) chega mesmo a afirmar que, se fosse dado ao homem a oportunidade de nascer num tempo qualquer de nossa história, num lugar qualquer, esse homem certamente escolheria nascer no século II, na Europa, no governo dos Cinco Bons Imperadores. Quanto ao caráter do governo específico de Marco, vejamos o que diz Dalfen:
“Os historiadores – Herodiano, Dion Cássio e a História Augusta – confirmam que Marco Aurélio governou segundo as suas convicções filosóficas. Eles ressaltam sua clemência para com os inimigos, sua preocupação com a justiça e pelo bem comum, sua liberalidade aliada à modéstia pessoal: como césar ele nada fez que contrariasse o seu caráter e as exigências da filosofia. Com a morte desse césar muito amado findou a Idade de Ouro de Roma.” (DALFEN, 2003, p. 177)
E, finalmente, a opinião do próprio imperador, ao agradecer aos deuses por:
“… ter concebido a idéia de um Estado com leis iguais para todos, assegurando a igualdade aos cidadãos e seus direitos. Conceber uma realeza que respeite, acima de tudo, a liberdade dos súditos.” [7]
Tingido pelas cores da moeda e das desigualdades, frutos da incapacidade dos homens de reconhecer a natureza e, com ela, entrar em homologia, Zenão certamente tinha consciência das repercussões de sua cidade. Ambos, cosmópolis e spoudaiós, estão inviabilizados pela excessiva perfeição. Marco Aurélio, sentindo o paradigma imposto pela doutrina, e mesmo proclamando a cidadania do mundo como necessidade, se consola com os pequenos progressos alcançados em seu governo[8]. Se ele conseguiu implementar o que Zenão propunha, que o diga a posteridade.
STOA E IDADE DO OURO
Analogias, metáforas e parábolas: formas de tornar real o mágico, sensível o fabuloso, concreto o que se encontra na esfera da ficção. A vitória dos deuses proporciona segurança, alento e ordem num mundo tumultuado, onde lutas constantes são travadas com outras cidades. Se não justificadas, as narrativas tendem, ao menos, a suavizar um panorama de intenso conflito.
Oriundos de um passado distante, os mitos se projetam para o futuro com promessas como redução das desigualdades e paz mundial. Objetivando um mundo melhor, não encontrável, os mitos proporcionam respostas, projetam nossas ações para algo melhor, superior, imutável, como um sátiro que busca uma ninfa, sem nunca encontrá-la. Nesse sentido, Chauí dirá que o mito tem por função:
“… resolver, num plano imaginativo, tensões, conflitos e antagonismos sociais que não têm como serem resolvidos no plano da realidade. (…) Graças ao encantamento do mundo – cheio de deuses e heróis, de objetos mágicos e feito extraordinários – o mito conserva a realidade social dando-lhe um instrumento imaginário para conviver com suas contradições e dificuldades.” (CHAUÍ, 2002, p. 36)
Ao se assimilar aos mortos[9], Zenão, possivelmente, lança mão de recursos narrativos para pensar o mundo. Divinizado, o lógos assume “expressão poética de uma verdade física” (REALE, 2002, p. 310). E nas paixões e na moeda emerge o distanciamento desse mesmo equilíbrio. A ação passional e as relações mercantis sem controle devem ser harmoniosas, adequadas, idêntica ao lógos.
O abuso de poder está descartada, assim como tudo quanto for capaz de produzir diferenças. O soberano se dilui na figura do spoudáios e seu reinado no mundo, o que contrasta com “a criação de reinos e impérios, onde o poder é altamente centralizado” (MARCONDES, 1997, p. 87). As instâncias civis, religiosas, mercantis e jurídicas perdem seu valor, que é deslocado para o centelha divina que reside no homem, único critério capaz de norteá-lo e afastá-lo de suas próprias palavras circunstanciais, ao á-lógos.
Ao classificarmos a cidade zenoniana como não encontrável, devemos considerar que ela é regida sob outros princípios, também não encontráveis. A politéia estóica reside na topografia das aspirações, do imaginário. Por isso, deve ser interpretada enquanto portadora de uma natureza essencialmente mítica e miraculosa. A incessante defesa da igualdade entre os homens – não deixemos de frisar que, pela sabedoria, o escravo Epicteto se eleva ao imperador Marco Aurélio – nos faz recordar sobre uma época em que a sociedade era regida pela unidade, sem disputas, sem dor, sem males.
Se a extinção do desejo é o alvo do filósofo estóico, que ao menos resista apenas um: o de estruturar uma sociedade única, sem limites topográficos, absoluta, igual, justa. A astuta dialética desses filósofos pode ser duramente criticada, sobretudo pelos céticos, quando não devidamente interpretada. E os mitos proporcionarão terreno através do qual o argumento se torna possível.
As Questões Homéricas, livro de Zenão, hoje perdido, segundo noticiado por Diógenes Laércio, entre outros de teor mítico, revelam o interesse pelo assunto. A compreensão da sacralidade dos deuses e a forma de vida dos homens da Idade do Ouro parece ser o que importa.
Sentindo o peso de ser um estrangeiro e vivenciando a queda da pólis, o cipriota tenta, pelos contos narrativos, resolver e conviver com suas contradições e dificuldades (CHAUÍ, 2002, p.36). E o faz não pela promessa de um mundo melhor no futuro – afinal, o núcleo do valor para os estóicos reside apenas no presente -, como farão os cristãos alguns séculos mais tarde. A proposta é de convencer pela via da demonstração de quão injusta pode ser a sociedade historicamente constituída, a mesma sociedade que condenou Sócrates à morte, fez de Platão um escravo e, agora, faz com que Aristóteles se refugie de Pella, capital da Macedônia.
Gazolla refletirá sobre a contribuição da experiência vivenciada para a construção da cidade estóica:
“O tópos ético-político estóico aponta para o que não existe – a Cosmópolis – e com isso registra o ideário histórico – poderia existir a Cosmópolis – e desvenda significados, aguça as fantasias adormecidas sobre o melhor, faz emergir fortemente o que descontentamento com os fatos vividos porque distantes do modelo desejado.” (GAZOLLA, 1999, p. 196)
A falta de rumo do homem grego deve ser compreendida em face de suas ambições para o futuro e de sua esperança em reencontrar o que perdeu. E seu desalento será tanto maior quanto for a distância que o separa do fruto de suas significações e fantasias.
Hesíodo narra um mito distante demais para o homem ordinário, maculado pela finitude e mazelas de todo tipo. Ressuscitado por Zenão, esse homem da Idade do Ouro se movimenta, age e pensa como um deus, como quem vive num contínuo festim: foi este o seu privilégio real[10].
Em seu naturalismo estético e ético, o filósofo estóico exerce seu éthos num tempo além do tempo, não mensurado pela cronologia humana. A inovadora beleza dessa proposta, a de estruturar a interioridade pela via da physis, faz com que ele seja reconhecido por todos pelo seu próprio modus vivendi. Talvez a rigidez da inovação – tal é o julgamento que a história lhe reservou -, exposta na vida no campo dos indiferentes ou no alcance da tão sonhada ataraxía, ou mesmo no pensar numa sociedade isenta de males, tenha levado a tradição interpretativa a conceber esse filósofo como alguém frio, premeditado, impassível aos sofrimentos. De qualquer modo, devemos pensar que na figura de um Marco Aurélio a figura do estóico se desdobra como realidade e o mito da Idade do Ouro, ao menos uma vez, adquire consistência concreta.
Bibliografia
ALGRA, Keimpe. Crisipo. In:______. ERLER, Michael.; GRAESER, Andreas (Org). Filósofos da Antiguidade II: do Helenismo à Antiguidade Tardia. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2003. 304 p. (Coleção História da Filosofia, II).
BRUN, Jean. O Estoicismo. Lisboa: Edições 70 [s.d.].
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Aristóteles. 2 ed., revisada e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
DALFEN, Joachim. Marco Aurélio. In:______. ERLER, Michael.; GRAESER, Andreas (Org). Filósofos da Antiguidade II: do Helenismo à Antiguidade Tardia. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2003. 304 p. (Coleção História da Filosofia, II).
GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GUARINELLO, N. Luiz. Nós e os Mitos. História viva mitologia, São Paulo, volume 1, [s.d..]
LAERTIUS, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1977.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. 6 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
GAZZOLA, Rachel. O Ofício do Filósofo Estóico: o Duplo Registro da Stoa. São Paulo: Loyola, 1999.
THERESE, Fuhrer. Sêneca. In:______. ERLER, Michael.; GRAESER, Andreas (Org). Filósofos da Antiguidade II: do Helenismo à Antiguidade Tardia. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2003. 304 p. (Coleção História da Filosofia, II).
Notas
[1] . Pohlenz, La Stoa, I, p. 54.
[2] . Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, VII, 33 – Stoicorum Veterum Fragmenta, I, 259 e 268.
[3] . Clemente de Alexandria, Strom., IV – SVF, III, 237
[4] . Fílon de Alexandria, De Joseph, vol. 2 – SVF, III, 323
[5] . Marco Aurélio, Med. 6: 44
[6] . Vide as obras Que os Estóicos Dizem Coisas Mais Extravagantes que os Poetas e As Contradições dos Estóicos.
[7] . Marco Aurélio. Med., 1:14.
[8] . Marco Aurélio. Med. , 9: 29
[9] . Dio. Laércio, VII: 2 – SVF, I, 1
[10] . Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, verso 126
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