Michel Onfray: Há uma história oficial escrita há mais de mil anos pelos vendedores que, na Europa, desde a conversão do Império Romano à nova religião pelo Imperador Constantino, são os cristãos. E se há vencedores, há, portanto, vencidos. Os vencedores deram destaque a todas as filosofias que se parecem com o cristianismo, ou que são compatíveis com ele: o platonismo, o estoicismo ou o aristotelismo combinam bem com os interesses dos vencedores, assim como os espiritualistas, os deístas, os teístas, os dualistas, os múltiplos e diversos crentes. Em contraste, os materialistas, os atomistas, os ateus, os sensualistas, os empiricistas e os anarquistas não combinam com os "oficiais". A universidade e lugares oficiais de ensino secundário estabeleceram listas de noções, conceitos e de autores para os programas que são ensinados, como um catecismo - Platão, Descartes, Kant, ... A contra-história, por outro lado, é a história das margens, das filosofias espúrias, dos pensadores vencidos - Demócrito, Gassendi, Helvétius... Portanto, são os atomistas da antiguidade, o epicurismo grego e sua fórmula campaniana, os gnósticos licenciosos, os rocos, os ultras do Iluminismo, os socialistas tópicos destruídos pelo triunfo do Marxismo (que é uma filosofia idealista emblemática) e tantos outros filósofos do século 20 aos quais me dedico - Otto Gross, Eric Fromm, Wilhelm Reich, Paul Nizan, Georges Politzer, Camus, etc.
CPF: De maneira até sarcástica, você usa o termo antifilósofos. Poderia traçar seu entendimento quanto ao que seja um antifilósofo? São os mesmos da contra-história?
MO: Não, eu não utilizo esse termo sarcasticamente porque ele realmente existe na história das histórias e eu creio que o utilizo sensatamente: os antifilósofos eram, no século 18, os adversários dos filósofos do iluminismo. Católicos, monarquistas, crentes, opositores da Revolução Francesa, eram os defensores reacionários de uma forma de pensar tradicionalista. Esquecemo-nos deles, mas esses pensamentos eram muito poderosos no século 18. Seus representantes mais famosos foram: Lelarge Lignac o abade Bergier Pompignan Lefranc, pessoas que foram totalmente esquecidas. Além disso, há na França um filósofo que fez carreira sobre o conceito da anti-filosofia, François Laruelle, que nunca se referiu à existência histórica dessa evidente linha de pensamento... Eu não faço filosofia da contra-história dos antifilósofos, mas dos filósofos que se opõem à filosofia dominante.
CPF: No seu livro 4: Os ultras das Luzes o senhor comenta que o século 18 é deísta e não ateu. Qual implicação desse fato para compreensão do pesamento formulado durante esse período?
MO: O século 18 ainda é visto e lido com lentes marxistas, até mesmo por aqueles que se julgam livres de contaminação marxista. A leitura desse século é feita pelo prisma leninista. Marx escreveu a filosofia da história de Hegel, para quem todo o pensamento só existe, desde a antiguidade clássica, para se atingir um ápice, um pico filosófico que o realiza. Lenin acreditou que a revolução de 1917 abolia a filosofia, realizando-a. Desde então, o materialismo francês do século 18 é apresentado como o ancestral do materialismo histórico e dialético. Portanto, é preciso que se apresente "La Mettrie, helvétius e Holbach", os precursores da Revolução Francesa, desde outubro de 1917. O Partido Comunista Francês tinha uma editora, Editions Sociales, que publicava esses autores em antologias, destacando cuidadosamente o que foi apresentado como a preparação para o marxismo-leninismo. Portanto, nós tornamos filósofos deíestas como ateus, não o sendo (apenas Holbach é ateu). A história das idéias não deve ser submetida a uma grande prévia de leitura: o que a filosofia tem escrito conta mais que o glossador a faz dizer. Eu não me sirvo dos filósofos, eu os sirvo explicando o que eles realmente disseram, escreveram, publicaram. Para alguns, esse exercício é terrível, porque, sob a lenda, descobrimos um pensamento mal entendido, às vezes em desacordo com a sua reputação. Eu acabo de concluir um curso sobre Beauvoir e Sartre no qual a lenda de resistentes antifascistas se quebra sob a verdade histórica: Sartre escrevia na Comoedia, uma revista colaboracionista em 1941 e 1944, e Beauvoir, em 1944, trabalhava na Radio-Vichy, uma rádio também colaborista...
CPF: Quem e o que são os ultras das Luzes?
MO: São Meslier, La Mettrie, Maupertuis, Helvétius, D'Holbach, Sade. Mas eu me lamento não ter acrescentado Dom Deschamps a eles. Eu me ocuparei de Dom Deschamps ao fim do meu seminário de contra-história (em três ou quatro anos) com um volume de "arrependimentos", como se diz na pintura... São filósofos que exploram a fundo uma idéia e analisam as consequencias éticas e políticas em ruptura total com o Cristianismo: a negação de Deus e da religião para Meslier, o reinado incontestável do átomo em La Mettrie, a necessidade de uma moral descuidada de Deus para Helvétius, a razão científica lançada contra a superstição religiosa em D'Holbach, o prazer sem limite em Sade, e também o comunismo hedonista de Dom Deschamps.
CPF: O que se vê de errado, se podemos dizer assim, na Filosofia praticada e/ou ensinada hoje?
MO: A Filosofia dominante sempre existiu. Ela se manifesta no pensamento oficial, institucional, no corpo docente do Collège de France, na Sorbonne, na École Normale Supérieure, da École Pratique des Hautes Études e em alguns lugares que gostam de se apresentar como alternativos, mas que são correias de transmissão dessas instituições: o Centro Georges Pompidou e o Palais de Tokyo, por exemplo ... A École Normale Supérieure produziu nomes como Bernard-Henri Levy e Alain Badiou, André Glucskmann e Serres Michel, Alain Finkielkraut e Debray Régis, André Comte-Sponville e Alain Renault, além de uma série de outros produzidos do mesmo formado; Alain Badiou pode hoje celebrar "a idéia comunista" como se a realidade comunista não tivesse acontecido deixando-nos saber que o Gulag não coloca em questão a validade de um pensamento marxista-leninista para hoje e amanhã. Na Filosofia dominante, a realidade é menos importante do que a idéia... De minha parte, eu acredito exatamente no oposto!
CPF: Acredita que hoje qual seria o maior problema da Filosofia - seja em reflexão ou mesmo entrave?
MO: É o que acabei de dizer: esse idealismo... Mas se pode acrescentar algo mais: a dupla armadilha da ilegibilidade e da banalização da filosofia sob o pretexto de democratizá-la. Por um lado, o elitismo esotérico praticado em maneira sectária: o obscurantismo é apresentado como um sinal e uma garantia de profundidade, que é nada mais que o sintoma de um autismo intelectual deplorável. Além disso, o tropismo do "Manual para se tornar um filósofo em três dias", ou a "Pequena filosofia da bicicleta" e outros exercícios de marketing publicados por graduados em filosofia ganham de imediato uma extensa cobertura da mídia e vendas substanciais. Ora, os filósofos da antiguidade não tinham nem o desejo demagógico nema inclinação sectária, mas a intenção de democratizar a filosofia: em outras palavras, não descer a Filosofia até o público, mas elevar o público até a filosofia. Isso é o que meus vinte amigos e eu mesmo fizemos nesses dez anos na Universidade Popular de Caen, na Normandia.
CPF: No Brasil, alguns pensadores defendem que aqui deveria ser adotado o modelo de ensino francês, baseado nos liceus. Você, ao contrário, abandonou o liceu para se envolveu no projeto da Universidade Popular. Qual o maior diferencial dela para com os liceus?
MO: Os lugares institucionais, liceu e universidade, ensinam os filósofos intitucionais que convidam apensar o mundo, mas nunca ou raramente a agir sobre ele. A Universidade Popular é gratuita (livre), não exige nenhum diploma e também não fornece nenhum; ela não controla os conhecimentos, ela é de acesso totalmente livre. Os professores são todos voluntários, amigos, ninguém é pago por um curso ministrado. Ninguém paga para frequentar um curso. Lá, nós não ensinamos o conhecimento como um objeto arqueológico, mas como uma vitalidade suscetível de ajudar a construir uma existência e a conduzir uma vida filosófica. Nosso modelo não é nem a Sorbonne nem o Collège de France, mas o Jardim de Epicuro, onde a amizade é alei, onde se ensina um modo de viver, envelhecer,, amar, partilhar, sofrer e morrer. A instituição confisca a Filosofia para selecionar as pretensas elites que produzirão o sistema, a universidade popular convida cada um a se colocar no centro de si para planejar a condução de uma vida filosófica.
CPF: É interessante seu ponto de vista em compreender que a filosofia deve ser pensada sob a ótica de que ela, assim como as outras áreas do conhecimento, não passa de uma ferramenta. Poderia explicar melhor isso para nós?
MO: Durante quase dez séculos, dos pré-socráticos a Boécio, a filosofia é tida como inseparável da vida filosófica: não se filosofa para brincar com conceitos, escrever livros, ministrar cursos, glosar e comentar escritos, mas para se converter a uma outra vida. A conversão é um conceito da filosofia antiga que o cristianismo vai recuperar a seu odo. É lamentável, mas originalmente isso significa que o encontro com a palavra de um filósofo na ágora grega ou no fórum romano pode mudar radicalmente uma vida, porque, seduzidos pela palavra de um epicurista, um cínico, um cirenaico, um cético ou um estoicista - se irá viver uma vida que corresponda a esses ensinamentos. A Universidade Popular se inscreve dentro dessa linha: a de uma filosofia que permite a "escultura de si" - o título de um de meus livros...
* artigo extraído da revista Conhecimento Prático: Filosofia, edição 37. p. 8-13
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