Por Breno Lucano
O que você mudaria caso pudesse retornar ao tempo e reconstruir um novo futuro? Caso pudesse evitar a morte indefinidamente, você o faria? Essas são as questões centrais que cercam a segunda temporada de Dante's Cove, a série criada por Mike Costanza em 2005 e que traz Charlie David e Willian Gregory Lee como estrelas.
Segundo as tradições de Tresum, um esporádico período propicia a execução de um ritual que faz com que o feiticeiro retorne ao passado, altere-o, reviva-o, de modo a criar novas condições para o futuro, evitando coisas que não foram vividas ou mesmo situações trágicas. Diana mesma diz: "O Solstício de Libra dá ao feiticeiro o poder sobre o próprio tempo." E todos nós temos coisas que poderiam ser alteradas. No mundo de Dante's Cove também. Vejamos. Grace deseja uma vida feliz com Ambrosius, sem seu apelo sensual com Raymond. Mas com a ajuda da flor estelar, vê que seu futuro seria incerto, uma vez que, segundo o entendimento da Casa da Lua, o homem deve ser sacrificado após a geração de um filho, como aconteceu com seu pai, Edwin. Diana, por outro lado, deseja retornar e salvar Edwin e toda a Casa do Sol do domínio de Grace e sua mãe. Embrora Ambrosius não esteja tão interessado com o ritual dos feiticeiros - e sua atenção esteja centrada em Kevin - podemos imaginá-lo salvando Raymond da morte.
Entre os mortais também há algo a mudar. Kevin poderia retornar aos tempos em que sua mãe conheceu o padrasto, impedindo o encontro. Toby aos tempos na Grécia com seu avô. E, principalmente, Van. Claro, Michele nunca entendeu o "lado obscuro" - como ela mesma diz - de Van e deseja desesperadamente sair de Dante's Cove rumo à Iowa. Mas flagra Van num ritual, o que a obriga a enfeitiçar Michelle para que esqueça sua ligação com Tresum. O feitiço sai errado e Michelle esqueça completamente a existência de Van. Com a ajuda de Grace e do Ritual dos Feiticeiros, Van planeja retornar e desfazer o feitiço que lançou sobre Michelle.
Não temos aqui uma discurssão sobre a composição metafísica do tempo, como supôs Agostinho, na construção de um tempo a-temporal. A questão aqui se pauta na mudança, no transcorrer dos acontecimentos, no devir. Heráclito é lembrado pela famosa sentença: "não nadamos duas vezes no mesmo rio". Heráclito tinha razão. As águas não são mais as mesmas, nem a areia do fundo. As pessoas que a acompanham de certa forma também não são as mesmas. A brisa que soprava no momento passou. As pedras estão em diferentes posições. Aquela ocasião inteira foi esgotada, passada, nunca mais voltará.
Marco Aurélio dirá de forma única:
"Mesmo que devesses viver três vezes três mil anos, ou três vezes dez mil anos, nunca te deverias esquecer de que ninguém perde senão a vida que está vivendo, nem vive senão a que perde. Assentado isso, a existência mais longa e a mais breve se equivalem. Sem dúvida, se o tempo presente é igual para todos, também o é o tempo que se esvai." (Med. II: 14)
Gregos e latinos se preocupavam com a questão do tempo, mas o entendiam de forma diversa. Heráclito e estóicos pensavam de forma semelhante nesse sentido. No turbilhão do mundo, a única coisa estável é a mudança, a certeza inequívoca de que o momento presente é o único que temos, que não terá volta, e, uma vez esgotado, será para sempre esgotado. O mundo é mudança, é transformação permanente de uma coisa em outra, formando novas coisas. E o devir apenas se torna possível porquanto a realidade se restringe ao imanente, àquilo que é captado pelos sentidos. Platão entende o tempo fora da imanência, restrito ao campo das idéias, ao Uno. E Proclo ainda, o verá como um contínuo processo de retorno à unidade primordial do qual todas as coisas derivam.
Mas Ambrosius e Grace não precisam se preocupar com isso. Tresum é a segurança de sua imortalidade. Nunca experimentariam as amarguras da degradação, o envelhecimento corporal, a evanescência de sua própria existência. Estiveram presentes nos trágicos acontecimentos de 1840, estiveram presentes no Solstício de Libra e seguramente estarão ainda aqui vendo outros rituais do tempo. Essas perdas seriam poupadas. Mas apenas essas. A imortalidade possui seus agravos e suas complicações.
Breves reflexões. Construímos coisas porque sabemos que amanhã não poderemos mais construí-las. Estamos hoje com os que gostamos porque não sabemos quanto tempo temos. Essa perspectiva é mais nítida com os pacientes terminais, para quem a finitude não é apenas uma teorização sobre o devir, mas uma realidade concreta, tangível ... e trágica! Tudo o que se faz se faz pensando no momento, tendo em vista um futuro mais ou menos próximo. De certa forma, a morte - ou melhor, o medo da morte - move o mundo à medida em que dele vivemos, nos construímos e fazemos uma biografia. Mas o que ocorre se, por ventura, fôssemos imortais? Ambrosius persegue Kevin como forma de compensar um século na solidão do cárcere. Um imortal que preserva a perspectiva de um mortal que entende a vida como transformação contínua, como perda constante. Mas a perda nunca chega, sempre apenas no anúncio.
"Desejar a imortalidade é desejar a perpetuação de um grande erro", dirá Schopenhauer. Não apenas em razão do mundo trágico construído pelo amigo de Wagner, mas porque com a imortalidade se esgotam todas as possibilidades de vida. Uma vida - imortal - que impossibilidade uma vida - mortal. Ver sempre as mesmas coisas, estar nas mesmas circunstâncias, nunca nada de novo, tudo sempre repetido: assinalamos aqui o caráter trágico da vida em Schopenhauer e implicitamente em Marco Aurélio.
Não se trata de desejar a morte, de cortejá-la, mas de apropriar-se de si, como dirá Sêneca. Observar todos os dias que se morre um pouco, que algo de si se esvanece e será para sempre perdido. Entender que a apropriação do próprio tempo fará com que não se queira a imortalidade nem taopouco a participação no Ritual dos Feiticeiros: nada há o que mudar na vida daquele que viveu sabendo que um dia iria morrer. Assim, a celebração da vida se encontra todos os dias, pelas escolhas, pela biografia que se construiu, pelas relações construídas. Tal é a alma de Dante's Cove.
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