Sade e a Defesa do Crime da Sodomia

Mas a sodomia, este pretenso crime que atraiu o fogo do céu sobre as cidades que a ela se entregaram, não é um extravio monstruoso cujo castigo não poderia ser bastante forte? Sem dúvida é muito doloroso para nós termos de censurar nossos ancestrais pelos assassinatos judiciários que ousaram permitir-se sobre este assunto. Será possível ser tão bárbaro a ponto de condenar a morte um infeliz indivíduo cujo único crime é não ter os mesmos gosto que vós? Trememos quando pensamos que há quarenta anos apenas os absurdos dos legisladores chegavam a isso. Consolai-vos, cidadãos! Tais absurdos não se repetirão! A sabedoria de vossos legisladores responde por isso. Inteiramente esclarecidos sobre esta fraqueza de alguns homens, sabemos hoje perfeitamente que tal erro não pode ser criminoso; a natureza não teria colocado no fluído que corre em nossos rins uma importância tão grande para se enfurecer com o caminho que nos agrada seguir por este licor.


Que crime haveria nisso? Seguramente não seria o de se colocar neste ou naquele lugar, a menos que se quisesse sustentar que as partes do corpo não se assemelham todas, e que existem umas puras e outras sujas; mas, sendo impossível avançar tais assuntos, a único pretenso delito aqui só consistiria na perda da semente. Ora, pergunto-vos se é verossímil que esta semente seja tão preciosa aos olhos da natureza, que não se possa perdê-la sem cometer um crime? Se assim fosse, ela procederia todos os dias a estas perdas? Não seria autorizá-las, permiti-las durante os sonhos ou quando gozamos de uma mulher grávida? Pode-se imaginar a natureza nos dando a possibilidade de um crime que a ultraje? Será possível que ela consinta a que homens destruam seus prazeres e se tornem om isso mais fortes do que ela? É espantoso o abismo de absurdos em que mergulhamos quando não raciocinamos à luz da razão! Tenhamos bem claro que é tão simples gozar de uma mulher de uma maneira ou de outra, que é absolutamente indiferente gozar de uma moça ou rapaz, e que é constante em nós não existir outras inclinações além das que recebemos da natureza; ela é por demais sensata e consequente para ter colocado em nós as que pudessem alguma vez ofendê-la.

A inclinação da sodomia resulta da organização e em nada contribuímos para esta organização. Crianças na mais tenra idade anunciam este gosto, e dele jamais se libertam. Às vezes é fruto da sociedade, mas, por causa disso, pertence menos à natureza? Sob todos os aspectos a obra da natureza, e, em qualquer caso, o que ela inspira, deve ser respeitado pelos homens. Se, por um recenseamento exato, viéssemos a provar que este gosto afeta infinitamente mais que o outro, que os prazeres que dele resultam são mais vivos e que devido a isso seus sectários são mil vezes mais numerosos que seus inimigos, não seria possível concluir que, longe de ultrajar a natureza, esse vício serve seus desígnios, e que ela se importa muito menos com a progenitura do que temos a loucura de crer? Ora, percorrendo o universo, quantos povos não veremos desprezar as mulheres? Alguns só servem dela quando absolutamente necessitam de um filho para substituí-los. O hábito que os homens têm de viver junto nas repúblicas tornará este ício cada vez mais comum, mas ele certamente não é perigoso. Os legisladores da Grécia tê-lo-iam introduzido em sua República se o assim o julgassem? Longe disso; achavam-nos necessário a um povo guerreiro. Plutarco nos fala com entusiasmo do batalhão dos amantes e dos amados; somente defenderam durante tanto tempo a liberdade da Grécia. Este vício reinou na associação dos irmãos de armas, cimentando-a, propriamente. Os maiores homens lhe eram propensos. A América inteira, quando descoberta, encontrava-se povoada de gente com este gosto. Na Luisiania, entre os habitantes do Ilinóis, índios vestidos de mulheres prostituíam-se como cortesãs. Os negros de Benguela mantêm homens publicamente. Quase todos os haréns da Argélia hoje em dia só são povoados por rapazes; em Tebas, o amor entre os rapazes não era apenas tolerado, mas ordenado; o filósofo de Queronéia o prescrevia para suavizar os costumes dos jovens.

Sabemos a que ponto ele reinou em Roma: havia lugares públicos em que os rapazes prostituíam-se vestidos de mulheres e as moças vestidas de rapazes. Marcial, Catulo, Tíbulo, Horácio, Virgílio escreviam tanto para homens como para as suas amantes, e podemos ler em Plutarco (Obras Morais, Tratado do Amor) que as mulheres não devem ter nenhuma parte no amor dos homens. Os amásios da Ilha de Creta raptavam outrora rapazes nas cerimônias mais singulares: quando amam um rapaz informavam aos pais o dia em que o raptor iria buscá-los; se o amante não lhe agradasse, o rapaz mostrava alguma resistência; em caso contrário, partia com ele, e o sedutor o restituía à família tão logo se servisse dele; nesta paixão, como na das mulheres, sempre se quer mais quando já se tem o bastante. Estrabão nos conta que nessa mesma ilha os haréns estavam cheios só de rapazes; eram prostituídos publicamente.

Querem uma última autoridade par provar quanto esse vício é útil numa República? Escutemos Jerônimo, o Peripatético: o amor dos rapazes, nos diz, expandiu-se por toda a Grécia porque dava coragem e força, e também servia para expulsar os Tiranos. As conspirações se formavam entre os amantes e eles se deixariam antes torturar a revelar seus cúmplices. O patriotismo assim sacrificava tudo à prosperidade do Estado; tinha-se certeza de que essas ligações fortaleciam a República; declamavam-se contra as mulheres; ligar-se a tais criaturas era considerado uma fraqueza reservada ao despotismo.

A pederastia foi sempre o vício dos povos guerreiros. César nos ensina que os gauleses entregavam-se extraordinariamente a ela. As guerras que as repúblicas tinham de suportar, separando os dois sexos, propagavam este vício, e, quando nele se reconheceu consequencias úteis ao Estado, a religião também o consagrou. Sabe-se que os romanos santificaram os amores de Júpter e Ganimedes. Sextus Empiricus assegura-nos que esta fantasia era também praticada entre os persas. Enfim, as mulheres, ciumentas e desprezadas, oferecem-se para prestar aos maridos os mesmos serviços que eles recebiam dos rapazes. Alguns tentaram, mas voltaram a seus antigos hábitos, não achando a ilusão possível.

Os turcos, fortemente inclinados a esta depravação consagrada por Maomé no Alcorão, asseguram, todavia, que uma virgem bastante jovem pode satisfatoriamente substituir um rapaz, e raramente tornam-se mulheres antes de terem passado por essa prova. Sixto Quinto e Sanches permitiram esse deboche; este último tentou mesmo provar que ele era útil à procriação e que uma criança engendrada após este decurso prévio seria infinitamente melhor constituída. Enfim, as mulheres se compensaram entre elas. Essa fantasia sem dúvida não tem amis inconvenientes que a outra porque o resultado é apenas a recusa em criar, os meios dos que possuem gosto pela propagação tão poderosos o bastante para que seus adversários jamais possam prejudicá-los. Os gregos apoiavam igualmente os extravios das mulheres em razão de Estado. Resultava disso que, bastando-se a si mesmas, suas comunicações com homens eram menos frequentes e elas assim são prejudicadas nos negócios da República. Luciano nos ensina o progresso que fez essa licenciosidade, e não é sem interesse que a vemos em Safo.

Em suma, não há um único perigo em toas essas manias, mesmo que fossem mais longe; mesmo se chegassem a acariciar monstros e animais, como nos demonstra o exemplo de muitos povos, não haveria nessas frivolidades o menor inconveniente porque a corrupção dos costumes, quase sempre muito útil num governo, não poderia ser nociva sob nenhum aspecto;devemos esperar de nossos legisladores bastante sabedoria e prudencia para estarmos seguros de que lei alguma emanará deles para reprimir essas misérias, que levando em conta a organização, mais poderiam tornar mais culpado aquele que se acha inclinado a ela do que o indivíduo que a natureza criou contrafeito.



SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova. São Palo: Iluminuras, 2008. p. 156-160







Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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