Que crime haveria nisso? Seguramente não seria o de se colocar neste ou naquele lugar, a menos que se quisesse sustentar que as partes do corpo não se assemelham todas, e que existem umas puras e outras sujas; mas, sendo impossível avançar tais assuntos, a único pretenso delito aqui só consistiria na perda da semente. Ora, pergunto-vos se é verossímil que esta semente seja tão preciosa aos olhos da natureza, que não se possa perdê-la sem cometer um crime? Se assim fosse, ela procederia todos os dias a estas perdas? Não seria autorizá-las, permiti-las durante os sonhos ou quando gozamos de uma mulher grávida? Pode-se imaginar a natureza nos dando a possibilidade de um crime que a ultraje? Será possível que ela consinta a que homens destruam seus prazeres e se tornem om isso mais fortes do que ela? É espantoso o abismo de absurdos em que mergulhamos quando não raciocinamos à luz da razão! Tenhamos bem claro que é tão simples gozar de uma mulher de uma maneira ou de outra, que é absolutamente indiferente gozar de uma moça ou rapaz, e que é constante em nós não existir outras inclinações além das que recebemos da natureza; ela é por demais sensata e consequente para ter colocado em nós as que pudessem alguma vez ofendê-la.
A inclinação da sodomia resulta da organização e em nada contribuímos para esta organização. Crianças na mais tenra idade anunciam este gosto, e dele jamais se libertam. Às vezes é fruto da sociedade, mas, por causa disso, pertence menos à natureza? Sob todos os aspectos a obra da natureza, e, em qualquer caso, o que ela inspira, deve ser respeitado pelos homens. Se, por um recenseamento exato, viéssemos a provar que este gosto afeta infinitamente mais que o outro, que os prazeres que dele resultam são mais vivos e que devido a isso seus sectários são mil vezes mais numerosos que seus inimigos, não seria possível concluir que, longe de ultrajar a natureza, esse vício serve seus desígnios, e que ela se importa muito menos com a progenitura do que temos a loucura de crer? Ora, percorrendo o universo, quantos povos não veremos desprezar as mulheres? Alguns só servem dela quando absolutamente necessitam de um filho para substituí-los. O hábito que os homens têm de viver junto nas repúblicas tornará este ício cada vez mais comum, mas ele certamente não é perigoso. Os legisladores da Grécia tê-lo-iam introduzido em sua República se o assim o julgassem? Longe disso; achavam-nos necessário a um povo guerreiro. Plutarco nos fala com entusiasmo do batalhão dos amantes e dos amados; somente defenderam durante tanto tempo a liberdade da Grécia. Este vício reinou na associação dos irmãos de armas, cimentando-a, propriamente. Os maiores homens lhe eram propensos. A América inteira, quando descoberta, encontrava-se povoada de gente com este gosto. Na Luisiania, entre os habitantes do Ilinóis, índios vestidos de mulheres prostituíam-se como cortesãs. Os negros de Benguela mantêm homens publicamente. Quase todos os haréns da Argélia hoje em dia só são povoados por rapazes; em Tebas, o amor entre os rapazes não era apenas tolerado, mas ordenado; o filósofo de Queronéia o prescrevia para suavizar os costumes dos jovens.
Querem uma última autoridade par provar quanto esse vício é útil numa República? Escutemos Jerônimo, o Peripatético: o amor dos rapazes, nos diz, expandiu-se por toda a Grécia porque dava coragem e força, e também servia para expulsar os Tiranos. As conspirações se formavam entre os amantes e eles se deixariam antes torturar a revelar seus cúmplices. O patriotismo assim sacrificava tudo à prosperidade do Estado; tinha-se certeza de que essas ligações fortaleciam a República; declamavam-se contra as mulheres; ligar-se a tais criaturas era considerado uma fraqueza reservada ao despotismo.
A pederastia foi sempre o vício dos povos guerreiros. César nos ensina que os gauleses entregavam-se extraordinariamente a ela. As guerras que as repúblicas tinham de suportar, separando os dois sexos, propagavam este vício, e, quando nele se reconheceu consequencias úteis ao Estado, a religião também o consagrou. Sabe-se que os romanos santificaram os amores de Júpter e Ganimedes. Sextus Empiricus assegura-nos que esta fantasia era também praticada entre os persas. Enfim, as mulheres, ciumentas e desprezadas, oferecem-se para prestar aos maridos os mesmos serviços que eles recebiam dos rapazes. Alguns tentaram, mas voltaram a seus antigos hábitos, não achando a ilusão possível.
Os turcos, fortemente inclinados a esta depravação consagrada por Maomé no Alcorão, asseguram, todavia, que uma virgem bastante jovem pode satisfatoriamente substituir um rapaz, e raramente tornam-se mulheres antes de terem passado por essa prova. Sixto Quinto e Sanches permitiram esse deboche; este último tentou mesmo provar que ele era útil à procriação e que uma criança engendrada após este decurso prévio seria infinitamente melhor constituída. Enfim, as mulheres se compensaram entre elas. Essa fantasia sem dúvida não tem amis inconvenientes que a outra porque o resultado é apenas a recusa em criar, os meios dos que possuem gosto pela propagação tão poderosos o bastante para que seus adversários jamais possam prejudicá-los. Os gregos apoiavam igualmente os extravios das mulheres em razão de Estado. Resultava disso que, bastando-se a si mesmas, suas comunicações com homens eram menos frequentes e elas assim são prejudicadas nos negócios da República. Luciano nos ensina o progresso que fez essa licenciosidade, e não é sem interesse que a vemos em Safo.
Em suma, não há um único perigo em toas essas manias, mesmo que fossem mais longe; mesmo se chegassem a acariciar monstros e animais, como nos demonstra o exemplo de muitos povos, não haveria nessas frivolidades o menor inconveniente porque a corrupção dos costumes, quase sempre muito útil num governo, não poderia ser nociva sob nenhum aspecto;devemos esperar de nossos legisladores bastante sabedoria e prudencia para estarmos seguros de que lei alguma emanará deles para reprimir essas misérias, que levando em conta a organização, mais poderiam tornar mais culpado aquele que se acha inclinado a ela do que o indivíduo que a natureza criou contrafeito.
SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova. São Palo: Iluminuras, 2008. p. 156-160
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