Marco Aurélio e o Estoicismo

La Mort de Marc Aurèle,
de Eugene Delacroix, 1844
Imperador por inteiro como foi, Marco Aurélio não passava, como Sêneca, a imagem de um homem dividido entre o dever do filósofo e a tentação do mundo. Ele não tinha do que se lamentar, nem precisava se preocupar com sua carreira ou com a administração de sua fortuna, mas apenas suportar o enorme peso de uma função que exercia de maneira plenamente consciente e responsável. Quanto à tentação de se aproveitar do poder, que freqüentemente desviou os júlio-claudiano, seu senso de responsabilidade diante da permanente ameaça bárbara permitiu-lhe não ceder jamais e não lhe deixou tempo livre. O cortesão filósofo nem sempre pôde ser filósofo, o imperador soube permanecer tal.



A importância de Marco Aurélio na história do estoicismo, da qual perdemos quase todos os textos, deve-se a uma coletânea de pensamentos, escritos em grego, língua da filosofia e de seus mestres. Composta por reflexões e de breves meditações classificadas em doze livros, classificação da qual se ignora se é original e baseia-se num projeto temático, esse texto desarticulado e sem título era um escrito puramente privado que o imperador não destinava à publicação. Não se sabe quando foi publicado; ao que parece, Temístio foi quem o tornou conhecido dois séculos mais tarde; devemos, no entanto, sua conservação a um bispo bizantino, Aretas, que, por volta do ano 900, publicou dele uma edição a partir de um exemplar em mau estado de conservação. O título que habitualmente se dá a esse texto, que poderia ser traduzido por Escritos Para Si Mesmo, deve-se a um editor da renascença. O sucesso dessa obra difícil de classificar é, pois relativamente recente. Os antigos quase a ignoraram, os bizantinos a salvaram e a renascença a colocou entre os grandes textos. Pouco conhecido, o livro  foi muito pouco copiado, de forma que foi muita sorte ele ter-se preservado até nossos dias. Se os antigos não o difundiram, foi talvez porque não se tratava de um livro propriamente dito e porque eles davam pouca importância às coletâneas e aos escritos privados. O contra-exemplo de Epicteto explica-se pela irradiação de sua pessoa e de seu ensinamento. De outro lado, a Antiguidade ainda dispunha das obras das principais autoridades do Pórtico, o que relativizava a importância de tal texto. Nós não conservamos uma única das centenas de obras gregas que os estóicos publicaram, e os dois únicos textos que chegaram a nós não estava destinado à publicação: as notas de Ariano e os pensamentos de Marco Aurélio. O acaso singular dessa conservação dá a esses textos uma importância que eles talvez não teriam se pudéssemos ler todos os estóicos. Não se pode, entretanto, negligenciar o fato de que a ausência de retórica e o caráter bruto e desarticulado de uma reflexão, desde que ela seja consistente, permitem a um texto romper de melhor forma o tempo. A forma sai de moda mais depressas que o pensamento. Pensemos em Pascal. Desprovido das vestimentas da retórica, do aparato artístico, o pensamento aparece em sua verdade. Ele não procura mais seduzir, arrastar, convencer ou espantar. O pensamento se dá em sua verdade, por aquilo que ele é. Assim acontece com os cursos de Epicteto, de um lado, e os pensamentos do imperador Marco Aurélio diante de si mesmo, do outro. Talvez esse singular acaso nos deixe um último ensinamento: a literatura do Pórtico sobreviveu apenas em dois textos marginais de absoluta autenticidade e que não são livros: diálogos de almas, de um lado, diálogos da alma, de outro. Um mestre tocado o mais profundo do homem e um imperador carregando o peso de sua alma e do mundo. Um escravo que escolheu o despojamento e um senhor de um império imenso e ameaçado. Tudo o que era técnica, saber e virtuosidade ficou na sombra, permanecendo apenas o homem diante do essencial. Talvez o Pórtico tenha-se legado somente sua verdade mais profunda.

O Estoicismo em seguida desapareceu discretamente da cena filosófica. Ainda existiam estóicos, mas eles não produziam mais obras importantes. No século III, o neoplatonismo sairia das sombras com Plotino. Seria a última - mas não a menor - filosofia do mundo grego. Ao mesmo tempo, o cristianismo começava a constituir para si uma armadura filosófica, utilizando para tanto o estoicismo e o neoplatonismo.


DUHOT, Jean-Joel. Epicteto e a Sabedoria Estóica. Edições Loyola: São Paulo, 2006. p. 50-53



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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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