Filósofo Libertino

Johnny Deep no filme O Libertino
por Breno Lucano

A filosofia Iluminista não é apenas apolíneo, também é dionísico, e ambas as forças se complementam. Claro, do lado de Apolo, entramos na ordem, a luz, a sobriedade, a calma, a medida, a epopéia dramática, a simplicidade, a transparência, a dialética, o numérico, mas também simultaneamente, com Dionísio, notamos também a música e a embriaguez, o canto e a dança, a vida exultante, o ardor, as forças misteriosas, o júbilo, a natureza. Voltaire põe Apolo num pedestal, mas, assim fazendo, esquece a existência de outra metade do mundo. O libertino evoluiu nesse teatro das forças, o filósofo libertino ao lado dele.

O termo libertino existe, mas desde sempre serve para quase tudo. É algo semelhante ao termo estóico e cínico, cuja precisão terminológica resiste apenas nos manuais de filosofia. Inicialmente, o termo libertino desacredita e desqualifica um homem e um pensamento: o libertino denomina de outro modo o ateísta, como se dizia na época, o reformado, o heterodoxo, o herético, o homem livre, ou qualquer outro personagem que não crê no Deus dos cristãos com o fervor e a abnegação mental exigidos pela Igreja Católica. A etimonologia confirma: o libertino - o libertinus dos romanos - define o emancipado.



Quando Molière - que conhecia muito bem os meios materialistas e epicuristas - escreve seu Don Juan em 1665, põe em cena um libertino. Quem é ele? O personagem da peça coleciona mulheres, ama todas elas, não liga para a moral quando se trata de assuntos eróticos, desenha os contornos do bem e do mal em muitos outros terrenos. Sem fé nem lei, como se diz, ele não reconhece efetivamente nenhum dever de compaixão, de amor filial, nem de dívida com quem quer que seja.

Nem por isso professa o niilismo e a falta de significação. O que, para além da fórmula, possibilita um manifesto intelectual de consequências consideráveis. Molière toma de empréstimo a Maurício de Nassau esse dito, referido por Guez de Balzac em seu Socrate Chrétien (Sócrates Cristão). Semelhante profissão de fé cientificista, materialista e experimental entabula uma ruptura metodológica: o libertino se emancipa de tudo o que é fé, crença, concede seu crédito ao que é demonstrável, verificável, evidente. Claro e distinto afirmar que sabemos...

O libertino não nega necessariamente a existência de Deus. Para essa boa e bela nova,  vai ser preciso aguardar Jean Meslier e seu Testamento, publicado depois da sua morte em 1729. Em compensação, senhor malvado evolui num espectro que reúne deístas e fideístas, pietistas e panteístas, e outros crentes, mas não ateus. Deus existe, por certo, mas, do modo epicurista, vive sua vida, não se preocupa com  a existência dos homens. Seu ser não obriga a nada na terra, nem em moral, nem em política: um ser cosmologica e eticamente sem função. Donde a necessidade de submeter essas duas instâncias ao regime da razão.

O libertino admite crer em Deus mas não tem vontade de que essa crença produza demasiados efeitos sobre sua razão, sua inteligência, seus costumes, sobre o uso de si, do seu tempo, do seu corpo, da sua carne. O libertino vive independente, apesar dos deuses. Tellemant des Réaux relata em suas Historietas que Des Barreaux, famoso libertino, se regala com um omelete com bacon numa sexta-feira santa quando, de repente, cai um raio e ressoa uma trovoada. Sem se alterar, ele joga o objeto do delito pela janela e conclui: "Muito barulho por um omelete!" Deus se dá por satisfeito, o libertino também.



Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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