por Breno Lucano
Os filósofos chamados de pré-socráticos também foram chamados de fisiólogos em razão do material de suas reflexões, a constituição do mundo. Nesse universo surgiram importantes visões da physis, aquilo que propõe sustentação ao mundo físico. Alguns dirão que essa sustentação se dá por meio do ar; outros, dos números; há ainda quem acreditasse nos átomos ou no ápeiron.
Com Sócrates temos uma ruptura. Pela primeira vez o material das reflexões é deslocado do mundo natural para a antropologia, o homem que vive no mundo. À partir de Sócrates, começa-se a pensar sobre o êthos, questões inerentes à psicologia, ao direito e à ontologia. Falava-se sobre o mundo, mas apenas como meio de pensar o homem que vive nesse mundo.
Se a interpretação de Schopenhauer estiver correta - como penso que está! -, o deslocamento do mundo natural para o homem se deu por uma razão fundamental: o homem sofre. O sofrimento passou a ser o motor da filosofia pós-socrática, isto é, passou a ser o motivo pelo qual se fazia filosofia. Isso justifica, entre outras coisas, o porquê a preocupação da filosofia helenista com a questão da felicidade e de que modo ela pode ser entendida e conquistada.
Alguns pesquisadores da história da filosofia indicarão que a preocupação da filosofia helenista se deu em face da felicidade em função do momento histórico em que se vivia, com a indexação cada vez maior dos domínios de Alexandre, o Grande e a perda de poder político nas pólis. Não entrarei nesse mérito. O que se pode dizer à respeito da felicidade transcende essa questão.
Diz a lenda que quando Buddha saiu de seu palácio encontrou a doença, a velhice e a morte, algo novo para alguém que sempre vivera num ambiente de conforto e longe das preocupações da vida imanente. Em outras palavras, pela primeira vez o príncipe encontrou o sofrimento. Com a constatação de que existe o sofrimento, Sidarta ultrapassou o chamado Samsara e alcançou o Nirvana. O sofrimento, portanto, foi o agente motivacional. E o mesmo ocorreu com os gregos e o desenvolvimento da filosofia ocidental, segundo o entendimento de Schopenhauer.
Ora, não é necessário viver num palácio para descobrir que vivemos imersos no sofrimento. O homem envelhece, passa fome, povos são escravizados literalmente por outros povos ou por sistemas políticos e econômicos. Apenas quem está doente sabe a importância do medicamento que alivia a dor. E apenas quem vive num campo de refugiados, sem alimento, água, medicamento, sendo obrigado a viver entre baratas e ratos, compreende perfeitamente o imperativo da paz. Grupos terroristas demonstram a cada momento seu poderia bélico e ameaçam a integridade e liberdades civis. O desemprego assola milhões. Ao que parece o mundo se assemelha perfeitamente ao circo de horrores de Schopenhauer.
A pergunta fundamental é esta: por que sofremos? A resposta não é fácil, dada a grande variedade de interpretações dadas pelos filósofos no decorrer dos séculos. Com o tempo houve alteração do modo de se pensar o homem e o sofrimento, de modo que as respostas são tão variadas quanto o número de autores e correntes filosóficas. Contudo, é-me perceptível que existe unanimidade de que o sofrimento é o substrato fundamental para todas as filosofias.
Agostinho, apresentando um platonismo cristianizado, desenvolve uma visão judaica da questão. O tempo começa a ser medido com a presença do pecado original. Antes daquele fatídico momento de desobediência à Deus no Paraíso, não havia fome, velhice, doença. Não havia dor. Mas com a desobediência, começa-se a marcar o tempo e, com ele, o devir. O pecado se torna a mola propulsora do sofrimento que deve ser combatido por meio de nova aliança com Deus. Uma vez mais, fuga do imanente.
Posto o problema, podemos verificar que algumas vezes o sofrimento é colocado no âmbito da própria constituição do mundo. Ou, como dirá Epicteto, na forma como interpretamos esse mundo. Se Epicteto estiver correto, o problema talvez não seja o mundo, mas a forma como o vemos. A polarização da filosofia da mente será tratada como distinção entre mente e corpo: de um lado a mente e do outro o corpo, sem qualquer interferência entre um e outro.
O sofrimento pode ser visto como não adequação do homem à Natureza; como desvirtuamento do dever enquanto imperativo ético; como distanciamento de Deus; como falso entendimento da Verdade; como juízos inadequados; como vazão às paixões. Alguns dirão que a insuflação do eu produz sofrimento. Outros, que a castração do eu é que produz sofrimento. Há quem diga que a mentira produz dor. Há também quem diga que o mercado liberal produz ainda mais dor.
Aristipo discorre que prazer e dor são percepções que decorrem do sensível. Mas continua afirmando essas noções são verificadas de modos diferentes entre as pessoas. Começa já na Antiguidade aquilo que hoje chamamos de subjetividade, isto é, o mundo perde sua constituição própria e passa a ser constituído de acordo com a forma com que nós o vemos. O mundo é, antes de tudo, nosso mundo, construído por nós. E, sendo nosso produto, pode ser tão Bom ou tão Mal quanto quisermos. Ou pudermos.
A dor existe, é real. E o mundo que criamos é tão real quanto o imanente. Talvez até mais porque somos obrigados a conviver com ele todos os dias, a todo momento. Ele pode ser nosso consolo, mas também nossa desilusão.
A escolha é nossa!
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