Uma Noite de Crime e Filosofia

por Breno Lucano

Criado por James DeMonaco em 2013, a franquia Uma Noite de Crime chega em seu apogeu com a quarta e última continuação: A Primeira Noite de Crime. A franquia abre lacunas reflexivas na política e na ética com sua tese central. Imagine que uma vez por ano, por doze horas, todo crime será permitido, inclusive homicídio. Não haverá policiamento, nem risco de prisão. Tudo o que a vontade e o desejo quiserem será permitido, tendo a imaginação como único limite.

No decorrer da franquia os filmes ganham cada vez mais teor político, com a disputa de grupos rivais no Congresso Americano lutando pela sanção das doze horas, chamada de Noite do Expurgo. O Expurgo se configura como aquele momento único em que o instinto pode ser aflorado, a raiva vai à toma, toda sua frustração pode ser expurgada, suas vontades - antes contidas - agora podem se voltar contra seus desafetos. E o Expurgo é um bem social porquanto reduz a criminalidade, elimina da sociedade elementos que seriam um entrave para si mesma, indivíduos que dependeriam do Estado passam a não depender mais.



A Primeira Noite de Crime conta como tudo começou. Um partido político chamado de Novos Pais Fundadores da América conquistam o poder e fazem um experimento político e científico numa pequena ilha onde, por doze horas, tudo será permitido. Todos se escondem em casa, como podem. Outros na Igreja, a orar. Ninguém poderia sair às ruas, pela sua própria segurança. E tocam as cornetas, avisando que o Expurgo se iniciara. Percebendo a pouca adesão ao Expurgo, os Novos Pais Fundadores enviam secretamente furgões e caminhões a percorrer o bairro para matar os que estivessem às ruas, ao mesmo tempo em que a televisão noticia vários elementos e assassinatos ocorrendo, afirmando portanto o sucesso do Expurgo. Concomitantemente, mostra grupos de pessoas tendo, como pode, sobreviver.

Uma observação importante consiste no seguinte: quem deve ser expurgado? Não é qualquer um. Os ricos burgueses estão à salvo. Os alvos são os negros - a maioria no filme -, latinos e demais minorias sociais, que tentam à todo custo sobreviver por doze horas.

Poderia ser Os Pais Fundadores e sua bondade, mas foi Bolsonaro e sua bondade. Porque tão logo a Noite do Expurgo se torna lei - nos filmes anteriores -, grupos sociais hegemônicos atacam e dilapidam grupos menores. No decorrer da franquia residências são invadidas, sequestros ocorrem, tortura. Negros, mendigos, latinos, gays. No Brasil poderia ser nordestino, negro, gay, mulher, índio. E, enquanto o Expurgo ocorre, o noticiário informa os crimes. Vidraças de lojas são quebradas, estabelecimentos saqueados; mas também movimentos sociais criminalizados, direitos civis negados - como o casamento gay -, escolas monitoradas.

Isso porque a bondade dos Pais Fundadores não é democrática, não é direcionada para todos, mas apenas para alguns grupos. Os outros grupos, são apenas minorias hegemônicas. Outros, mesmo sendo maioria numérica, como os negros, são minorias culturais. A bondade dos Pais Fundadores incita o que há de pior. Fui assaltado por aquele negro, vou matá-lo. Minha família heteronormativa está ameaçada, vou proibir a família gay e discriminar, porque não criminalizar. Não gosto de nordestino, posso fuzilá-lo sem piedade, expurgá-lo do crime de ser nordestino.

Quando o poder central sanciona um comportamento, vários outros grupos a têem como legítima. O presidente pensa assim, então meu comportamento é válido. Os Pais Fundadores não vêem como limpeza étnica e social, mas como a liberação da fúria. Mas a fúria produz limpeza étnica e social, porque são negros, gays, pobres que morrem. Tendo ou não Noite do Expurgo, sendo branco não corro risco, nem hétero, nem cristão, nem rico. Porque o branco, hétero, cristão, rico não está em vulnerabilidade social. Não está nas ruas, sendo presa fácil para os caminhões que os próprios Pais Fundadores mandam fazer incursão na cidade para abater justamente quem está perambulando. E mesmo assim conquistam notoriedade e o aplauso da multidão. O Expurgo foi um sucesso!

Um negro vagabundo foi fuzilado no Expurgo. Mas era assaltante mesmo! A professora é atacada na vida pública e nas redes sociais. Mas claro, era comunista! A travesti Dandara foi espancada até a morte. Bobagem, a lei que defende o hétero é a mesmo que defende gay! Aquele menor foi amarrado no poste. Não, isso é mi-mi-mi, vitimismo. O país está em crise! Ok, então é melhor menos direitos e mais empregos. Retorno à Inglaterra do século XIX.

Mas um olhar mais acurado verá nas nossas minorias as mesmas minorias que são perseguidas no Expurgo.  Num dos filmes da franquia, um grupo de pessoas está encarcerada num labirinto enquanto grupos armados com fuzis os encurralam. Enquanto isso, os ricos observam do alto, protegido por um vidro, fazendo apostas para ver quem sobrevive por mais tempo. Vejam, a questão não é quem sobrevive, mas quem sobrevive por mais tempo. O Expurgo é implacável!

E, enquanto grupos totalitários se exacerbam com a Noite do Expurgo, alguns poucos estão bem confortáveis e protegidos ao mesmo tempo em que a maioria está sendo caçada com um fuzil, e tudo isso legalmente sancionado, fica a pergunta: qual outro grupo social será o próximo a ser expurgado?


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