Nosso Lar, a República de Chico Xavier


Por Breno  Lucano

Quando pensamos no paraíso mítico de algumas religiões, rapidamente temos uma visão idealizada, de um mundo fora do mundo. Os desejos não realizados numa sociedade historicamente constituída são transportados para um novo topos, como igualdade e respeito mútuo, bem como a eliminação da fome, solidão e exclusão. E Nosso Lar, a república elaborada por Chico Xavier, é o exemplo espírita mais comum.

A teoria política de Xavier possui, como em outros expoentes religiosos, natureza teocrática. No filme temos a emblemática figura do governador, interpretado por Othon Bastos. O personagem toma de forma caricata a figura do príncipe de Bossuet, embora peque por parecer mais interessado em passar lições morais.

Chico Xavier entende que, para ser o governador de uma colônia devidamente evoluída em termos morais - e levando em consideração os postulados espíritas - ele deve ser igualmente evoluído. Isso se torna explícito por seu fácil acesso, rápido, sem burocracia, a qualquer concidadã de Nosso Lar. Ele se curva, dá exemplos, como diz Emmanuel, e, por pouco, não lava os pés de André Luíz.

Vale ressaltar que para Xavier, tal como para Bossuet, o príncipe apenas se faz por vontade divina. Deus age por forças próprias e dispõe que apenas alguns - não todos! - possuem o direito de governar, estabelecendo nítida divisão social e hierarquias, como no mundo material.

Assim, a monarquia é o sistema adotado por Nosso Lar. Mas uma monarquia diferente da de Calígula ou outro monarca determinado pela história. Ele é especial, escolhido por Deus para uma divina missão: a de governar seu povo. Faz lembrar um pouco os reis cruzados, a exemplo de Balduíno IV e Luís IX.



O sistema político de nosso lar se assemelha aos encontrados na Terra. As pessoas não são iguais. A experiência do poder é conferido apenas àqueles mais próximos de Deus, aos especiais. Na terra esses homens seguramente seriam os bispos, o Papa ou o Dalai Lama, reencarnação do próprio Buda da Compaixão.

O materialismo, marca presente no sistema de Kardec, também se encontra em Nosso Lar. As necessidades históricas materiais se repetem em Xavier: tem-se necessidade de alimentação - como a do hospital -, moradia -André Luíz confidência a Lisias sobre sua dúvida de onde morará -, transporte - ônibus movido a magnetismo. A moeda que circula é o bônus-hora: troca-se o serviço prestado entre os cidadãos. Lísias afirma que seu avô conseguiu a casa da família pós muito trabalho.

Diferentemente das repúblicas históricas, não há espaço para revoltas populares por brigas de poder em Nosso Lar. Como em Hobbes, uma parcela da liberdade individual é transferida para o  monarca, que tudo pode, para o bem da república. Por outro lado, os cidadãos são contidos e regidos por um acordo popular genericamente chamado Leis Morais. A guerra de todos contra todos cede espaço por um contrato social que mantém coesão e unidade na república teocrática

Renato Prieto como André Luíz
Materialismo, ceticismo e ateísmo são palavras erroneamente interpretadas, herança de um Kardec que pouco entende do que fala. Temos cura de feridas (físicas) por imposições de mãos (ato físico), sopas com sabor desagradável (para matar a fome física), magnetização da água (Kardec já falava que o fluído universal é material). Ceticismo, sistema de um Pirro, Carnéades e Hume, pouco se relaciona com a origem do sofrimento da imanência. Antes, traça um percurso epistemológico capaz de alcançar o ser em termos de probabilidade. E, finalmente, o ateísmo como motor de condução ao Umbral. Ora, é justamente o teísmo que provoca as divisões, guerras, morte, num longo processo histórico que se estende de um doce Jesus que não veio trazer a paz mas a espada, pelas Cruzadas, até os bombardeios de 11 de setembro. O ateísmo nunca produziu nenhuma morte, mas os diversos sistemas de governo. Chico Xavier apenas repete os erros conceituais de Kardec, que segue a genealogia iluminista Rousseau-Pestallozi-Kardec, tese que apresentarei mais tarde.

As dificuldades de Heloísa, sobrinha de Lísias,  têm suas razões. O contrato social induz à virtude a todo instante, abolindo a cultura - é provável que não existam sinagogas para os judeus que chegam à república -, a liberdade - apenas se pode se com deus -, a subjetividade - vontades particulares têm pouca importância diante do bem-comum. A luta de classes - cidadãos contra Anacleto - cede espaço para a coesão popular tendo por base justificativas teológicas.

Os populares são virtuosos não por escolha, mas por imposição. Ou se nega o pretenso materialismo e ateísmo e se adere ao código de ética da república, ou se está condenado às sombras do Umbral. O bônus-hora-virtude é a barganha sempre presente: trabalha-se para a coletividade, para o bem-comum, não por escolha, mas por necessidade de socorro de uma condenação imposta por deus. Contrato social - é assim que as coisas são! -, interesse e medo são os motores de um Estado pensado por Chico Xavier.

O filme merece ser visto, senão pelos efeitos visuais, ao menos pelas reflexões políticas que se fazem presente e o quão distante estão dos tempos atuais.


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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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