Sade, a Natureza e Deus

Só perdendo os sentidos para acreditar nisso. Este abominável fantasma (deus), Eugénie, fruto do terror de uns e da fraqueza de outros, é inútil ao sistema da Terra. Ele o prejudicaria infalivelmente, visto que suas vontades, que deveriam sr justas, jamais poderiam aliar-se às injustiças essenciais às leis da natureza; visto que deveria querer constantemente o bem e a natureza só desejá-lo em compensação do mal que serve às suas leis; visto que deveria agir sempre, e a natureza, cuja ação perpétua é uma de  suas leis , só poderia encontrar-se em concorrência e em oposição perpétua a ele. Mas, dir-se-á a este propósito, Deus e a natureza são a mesma coisa. Não é um absurdo? A coisa criada ser igual ao criador? Pode um relógio ser igual ao relojoeiro? A natureza não é nada, prossegue-se, é Deus que é tudo. Outra bobagem! Há necessariamente duas coisas no universo: o agente criador e o indivíduo criado. Ora, qual é este agente criador? Eis a única dificuldade que é preciso resolver, a única pergunta que é preciso responder.
Se a matéria age, move-se por combinações que nos são desconhecidas, se o movimento é inerente à matéria, se apenas ela pode, enfim, devido à sua energia, criar, produzir, conservar, manter, equilibrar nas imensas planícies do espaço todos os globos cuja vista nos surpreende e cuja marcha uniforme, invariável, enche-nos de respeito e admiração, qual então a necessidade de buscar um agente estranho a tudo isso, já que esta faculdade ativa se encontra essencialmente na própria natureza, que não é outra coisa senão a matéria em ação? Desafio a quem me possa prova-lo. Suponho que eu me engane sobre estas faculdades internas da matéria, só teria diante de mim uma dificuldade. O que fazeis oferecendo-me o vosso Deus? Vós me criais uma dificuldade a mais. E como quereis que eu admita, por causa daquilo que não compreendo, algo que compreendo menos ainda? Será mediante os dogmas da religião cristã que irei examinar... que irei me representar o vosso Deus terrível? Vejamos um pouco como ela mo descreve... O que vejo no Deus desse culto infame senão um ser inconsequente e bárbaro que cria um mundo hoje de cuja construção se arrepende amanhã. O que vejo nele senão um ser frágil que jamais consegue dobrar o homem à sua vontade? Tal criatura, embora emanada dele, domina-o;  ela pode ofendê-lo e merecer por isso eternos suplícios! Que Deus mais fraco esse! Como? Pôde criar tudo o que vemos e lhe ser impossível formar o homem a seu modo? Mas, argumentareis, se ele o tivesse criado assim, o homem não teria tido mérito. Que baixeza! E qual a necessidade dele merecer algo de seu Deus? Se o tivesse criado totalmente bom, ele jamais teria praticado o mal, e só então a obra seria digna de um Deus. É tentar o homem lhe deixando a escolha. Ora, em sua presciência infinita, Deus sabia qual seria o resultado disso. Logo, a partir desse momento, é com prazer que perde a criatura que ele mesmo formou. Que Deus horrível esse! Que monstro! Que celerado mais digno de nosso ódio e de nossa implacável vingança!

Entretanto, pouco satisfeito com uma tarefa tão sublime, ele afoga o homem para convertê-lo, queima-o, amaldiçoa-o. Nada disso modifica-o. Um ser mais poderoso que esse Deus vilão, o Diabo, conservando sempre seu império, podendo sempre afrontar seu autor, acaba sempre pervertendo, com suas seduções, o rebanho que o Eterno reservara para si próprio. Nada pode vencer a energia desse demônio sobre nós. O que então, segundo vós, concebe o Deus horrível que pregais? Ele só tem um filho; um filho único obtido não sei de que comércio; pois, se o homem fode, quis ele que seu Deus também fodesse. Destaca do céu esta considerável porção de si mesmo. Imagina-se que, talvez, sobre raios celestes, em meio ao cortejo dos anjos e à vista de todo o universo esta criatura sublime vai aparecer... Nada disso: é do seio de uma puta judia e no meio de um chiqueiro que ele anuncia o Deus que vai salvar a terra! Eis a origem digna que se lhe atribuem! Mas sua honrosa missão nos indenizará? Acompanhemos a personagem por um momento. O que diz, o que faz? Que missão sublime recebemos dele? Que mistério vai revelar? Que dogma nos prescrever? Enfim, em que atos sua grandeza vai eclodir?



SADE, Marquês. A FILOSOFIA NA ALCOVA. São Paulo: Iluminuras, 2008. p. 39-40


Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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