Memórias de Jean Meslier: Sexta Prova

por Breno Lucano

No decurso da Sexta Prova Meslier toma de empréstimo idéias que são comuns em todas as suas memórias. Isso faz de Meslier um autor redundante em alguns aspectos, mas vale lembrar que a redundância era a única forma de que dispunha no período para criticar e relembrar suas teorias mais basilares.

A Sexta Prova possui caráter essencialmente político e, para tanto, deve relembrar o período histórico vivido pelo cura. Estamos sob o regime de Luís XIV, lugar-comum do obscurantismo e opressão dos nobres feudais sobre a população faminta de uma França constituída quase inteiramente por camponeses desprovidos de terra. Questionando o assim chamado direito divino do rei - proclamado entre outros, por Bossuet -, Meslier reitera que as religiões sempre autorizam historicamente a exploração dos grandes da Terra sobre os pobres. E, claro, o cristianismo em sua versão católica romana é a principal religião responsável por esse

"grande prejuízo do bem público e do bem comum dos povos e dos particulares". (Tomo II)


Uma doutrina religiosa que autoriza e justifica a exploração não deveria ser entendida como instituição divina por não conduzir a um deus bondoso e sábio, como crêem os cristãos. Caso fosse realmente divino, esse pretenso deus deveria se empenhar na resolução das injustiças sociais e na garantia da ordem e do bem comum. O cristianismo é, portanto, falso. Numa palavra: Meslier desenvolve na Sexta Prova a tese de que a religião, particularmente a cristã, exerce um papel nefasto sobre a população, justificando as injustiças e maquinando aos pobres uma compensação por meio de um paraíso conquistado após a morte. 

Meslier enumera alguns abusos de caráter moral, político e social cometidos pelo cristianismo. O primeiro é endereçado à Igreja Católica por endossar as enormes desigualdades políticas. Os teólogos e a Cura Romana por toda parte proliferam teses que procuram indicar como natural e necessária a desproporção que se vê por toda parte quanto à condição humana, de modo que possamos verificar de um lado homens que nasceram unicamente para governar e tiranizar e, do outro, homens que nasceram unicamente para se submeter à ordem natural das coisas, já que desejada por deus. Apesar de pertencer à hierarquia da Igreja, escreve o padre:

"Todos os homens são iguais por natureza, todos têm igualmente direito de viver e de caminhar sobre a Terra, igualmente direito de gozar a sua liberdade natural, e de ter parte nos bens da terra trabalhando utilmente uns para os outros para terem as coisas necessárias e úteis à vida." (Tomo II)

Inspirado em Sêneca e curiosamente em Cristo, Meslier disserta que os deveres são tão naturais quanto os direitos. Tanto um quanto o outro nos ensinam que devemos nos olhar e nos amar como irmãos e estabelece a fraternidade e a caridade como pontos centrais em sua ética.

O autor prossegue se questionando sobre a liberdade. A liberdade é entendida sob a oposição à tirania. Apesar de suas densas críticas à hierarquia eclesiástica, Meslier não tendencia para o que chamaremos a partir do século XIX de anarquia, preconizando, portanto, uma justa subordinação. Para o bem da sociedade, é necessária uma subordinação de uns sobre os outros. Contudo, essa subordinação possui substância diversa da encontra sob Luís XIV, já que se caracteriza por justiça.

Meslier reflete intensamente nesta sexta prova sobre as diferenças entre ricos e pobres e de que modo o Antigo Regime, associado ao Clero, contribuíram para a miséria da população. Com base nestas reflexões, Meslier distingue o paraíso do inferno em termos sociais. Ao seu ver o verdadeiro inferno - em oposição ao inferno imaginário dos religiosos - se encontraria na miséria propriamente dita, com suas carências e aflições, enquanto o paraíso se associaria à condição de soberba e abundância própria dos ricos. Dessa desigualdade social surgem as revoltas populares, os roubos, trapaças e assassinatos. Dirá o cura:

"se os homens possuíssem e gozassem igualmente em comum, como eu disse, dos bens, das riquezas e das comodidades da vida, se todos eles se ocupassem unanimemente com quaisquer exercícios honestos e úteis ou com qualquer honesto e útil trabalho do corpo ou do espírito, e se eles manejassem sabiamente entre eles os bens da terra e os frutos de seus trabalhos e de suas indústria, eles teriam suficientemente lugar para todos viverem felizes e contentes, pois a terra produz quase sempre assaz suficientemente e mesmo assaz abundantemente do que os alimentar e os manter se eles fizessem sempre um bom uso de seus bens (...) (Tomo II)

No decorrer da sexta prova, Meslier reforça sobremaneira suas reflexões políticas:

"O que seriam, por exemplo, dos maiores príncipes e dos maiores potentados da Terra se os povos não os sustentassem; é tão-somente dos povos (que eles poupam entretanto tão pouco) que eles tiram toda sua grandeza, todas as suas riquezas e todo seu poder, em uma palavra, eles não seriam nada senão homens fracos e pequenos como vós se vós não sustentásseis sua grandeza; eles não teriam mais riquezas do que vós se vós não lhes désseis as vossas e, enfim, eles não teriam mais poder nem mais autoridade do que vós se vós não quisésseis vos submeter às suas leis e às suas vontades." (Tomo II)

Apesar da crítica contundente sobre os príncipes, Meslier assinala que houve na história bons príncipes. Cita como exemplo Marco Aurélio, que chegou a vender seus bens pessoais para impedir a elevação de impostos para seus súditos. Essa atitude deveria ser seguida por todos os príncipes que se dizem cristãos.

Finalmente, Meslier termina a sexta prova refletindo sobre a adulação aos eclesiásticos enquanto força de ampliar a distância entre ricos e pobres e manter as desigualdades sociais.
 
 


Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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