por Breno Lucano
De modo geral, considerando os 27 anos com que Sade ficou preso, entende-se que sua obra seja mera transgressão sexual, um caso patológico. Mas esse é um equívoco de viés moralista, reducionista e superficial. Sade incomodava e ainda incomoda não por ser um depravado, mas por subverter a hierarquia dos discursos.
A concepção de otimismo e de bondade encontrada no estado de natureza - presente, por exemplo em Rousseau - era refutada por Sade. Para ele, a natureza nos levou ao estado de guerra e destruição perpétuas. Em substituição à bondade, Sade coroa o egoísmo como o motor primário do homem. Assim, seus escritos são marcados por destruição, orgias, assassinatos, adultérios, estupros, incestos, sodomitas, parricídios, lesbianismo, flagelação. Em outras palavras, práticas sexuais insólidas de todos os tipos eram meios de exprimir o que de pior pode existir por ser próprio da natureza: uma visão de mundo caótica de prazeres, sem Deus e qualquer justificação racional de moralidade. Para Sade, o anti-Rousseau, não havia qualquer esperança para a humanidade. A extinção da espécie era inevitável devido ao poderio de destruição dos homens, e não havia qualquer motivo para se lamentar por isso.
Os anos em que Sade viveu foram marcados por transformações políticas e sociais. A queda do Antigo Regime produziu abalos para o catolicismo. O clero conservador sempre viu a Revolução Francesa como um de seus inimigos, responsabilizando-a pela perda de seus privilégios e pela diminuição de sua participação na condução dos assuntos terrenos. A teologia cedeu cada vez mais espaço para a ciência e para o discurso filosófico.
Contudo, apesar dos golpes desferidos pela Revolução, não se deve superestimar a perda de influência do catolicismo. Já durante o período napoleônico, os padres recuperaram muito de seus privilégios e parte de seu antigo espaço público. Os sinos das igrejas, em parte, voltam a tocar.
Sade reproduz muito de seu tempo em seus escritos, de modo que o anticlericalismo é nítido em suas linhas. À medida em que rejeita a ordem divina no mundo, assume cada vez mais uma postura materialista e atéia. Ataca incessantemente a Igreja e tinha especial predileção por demonstrar escárnio pelo papa e pelos demais membros da Igreja.
O Divino Marquês, assim como era comum em seu tempo, utiliza a pornografia como substrato para criticar e contestar os hábitos sociais. As encenações eróticas eram utilizadas para sobrepor a corporeidade à alma, os desejos à piedade. O discurso libertino sadeano é tão embebido em irreligiosidade que, às vezes, parece estar mais preocupado em desvalorizar o clero do que em proferir obscenidades. Contudo, há críticos que dizem o oposto. Sua marcante força em caracterizar as obscenidades praticadas por padres e freiras em orgias selvagens em conventos possui, implicitamente, não uma demonstração de ateísmo, mas uma religiosidade radical que procura muito mais denunciar os abusos dos poderes clericais no sentido de aprimorá-los em sua busca por Deus. Segundo esses intérpretes, como Gustave Flaubert (1821-1880), Sade não seria um libertino no sentido estrito do termo, mas um piedoso devoto que procura salvar a Igreja dos padres.
A personalidade dilacerada de Sade impede julgamentos superficiais. Ora mostrava-se um entusiasta da subversão moral estabelecida; ora, ciente de sua origem aristocrática, defende os privilégios que acredita serem inerentes à sua própria condição. Não se deve esquecer que a libertinagem, para o autor, não é uma filosofia de massas. Em seus escritos são apenas aristocratas, padres e jovens pias que participam ativamente das orgias e flagelações em seu castelo. O castelo se torna, em última análise, o cenário para que os nobres exerçam livremente suas paixões.
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