por Breno Lucano
Interpretado por Rodrigo Santoro, Bicho de Sete Cabeças é um daqueles filmes que não se pode esquecer quando se pensa em Foucault. Nele, um jovem chamado Neto, vivido na vida real por Astregésilo Carrano, possui uma vida como a de qualquer jovem de sua idade. Rebelde, talvez; dava um teco aqui e outro lá. Possuía relação difícil com seu pai. Aliás, muito difícil. Um incompreendido. Mas qual adolescente não o é? Mas seu pai fez desse comportamento um bicho-de-sete-cabeças e o internou num manicômio. Afinal, lá é o local onde se trata dependentes químicos ou mesmo quem apenas dá um teco eventualmente. É isso o que se pensa ainda hoje. E Neto, então, conhece o inferno na Terra quando se depara com a realidade manicomial. Eletroconvulsoterapias, drogas neurolépticas para dopar, descaso dos médicos, maus tratos do corpo de enfermagem, doentes andando nus, jogados pelos cantos à procura de cigarro, perda de todo e qualquer vestígio de privacidade e de algo que se possa chamar de seu.
Foucault, tendo seu núcleo narrativo envolvendo o poder, faz elaborado estudo sobre o que ele chama de história da loucura. O autor defende a idéia segundo a qual a loucura é construção social e de que o louco não se faz em termos médicos, mas em termos sociais. O louco é um produto da sociedade. Ele refere que na idade média o louco possuía conotação diferente da de hoje. O louco era, antes de tudo, um visionário. O louco não era alguém que era excluído, mas alguém que deveria ser ouvido. Era alguém especial, um sábio que, algumas vezes possuía até mesmo relações com a corte: lembre, por exemplo, de Rasputim na Rússia. Mas lembre igualmente de outras figuras, lembre de são Francisco. Francisco foi um homem rico que passa a viver na penúria e a beijar leprosos, uma loucura naquele momento histórico. Loucura igual seria Jesus se assumir como filho de Deus naquele momento. E sua loucura foi penalizada com a cruz.
Prosseguindo na história, chegamos no Renascimento. Aqui a loucura não é mais entendida como adjetivação de alguém especial, mas é uma outra face da razão. Ou melhor, um desdobramento da razão. A loucura é o instrumento de que se serve a razão para dizer o quanto a sociedade é louca e quanto se faz necessária sua revisão. A obra Elogia da Loucura, de Erasmo, demonstra de que modo a loucura é vista como algo positivo.
Algo muda a partir de Descartes. A loucura não é mais vista como como alicerce da razão, de modo que se pudesse encontrar razão na loucura e loucura na razão. Com Descartes o louco é aquele sujeito desprovido de razão. E mais: ele é errado. O louco assume conotação negativa justamente por não possuir razão, por possuir erro, inverdades e falsidades. A partir do século XVI e XVII os louco sofre o que Foucault chama de Grande Enclausuramento. Nesse momento, os loucos são excluídos da sociedade, banidos em hospícios, os hospitais gerais proliferavam pela Europa. Eram loucos os desocupados, mendigos, homossexuais, devassos, bêbados e tudo quando fosse capaz de escandalizar e se desviar da normalidade. Em outras palavras, eram enclausurados os anormais segundo o ponto de vista hegemônico. O louco é um criminoso.
Foucault recorda que a partir do século XVIII o louco não é mais visto como um criminoso, mas como um doente, como um portador de uma doença. Esse foi o período de grande desenvolvimento da medicina, período da Revolução Industrial. Cria-se o mito do homem normal, o homem são, sem doenças, puro. E o louco é o cidadão que precisa de medicação. As correntes do período em que foi um criminoso são substituídas pelas drogas. O louco é objetivado como um saber médico, ele é estudado.
O poderio político dos médicos ditam as normas para os loucos. Ele representa a razão que deve dominar a loucura. O louco não se apresenta para um psiquiatra como ser humano, mas como alguém desprovido de razão e que dela precisa se recuperar. Com quem? Com o médico. O discurso do doente é submetido ao discurso do médico, que se pretende científico e que deve recuperar o estado são do doente.
O poderio psiquiatra persiste ainda hoje em muitos hospitais psiquiátricos. Mas nem tudo está perdido. Nise da Silveira é um exemplo de como a narrativa louca pode ser resgatada. Ou melhor, o que há de normalidade dentro da loucura. Talvez, entendendo até de que modo a loucura é necessária para a vida.
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