Ética Franciscana

por Breno Lucano


"A Regra e a Vida dos frades menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade." (Regra Bulada, 1)


Francisco de Assis é seguramente uma das figuras mais emblemáticas e populares do cristianismo. É de conhecimento geral alguns elementos de sua biografia, de modo que se tornou quase como um personagem folclórico, uma espécie de hippie pós-moderno. A imagem do rico que se fez pobre, vivia nos campos comendo frutos, dançando e cantando com leprosos e abençoando os animais fizeram dele alguém reconhecido na história, embora sejam apenas alguns aspectos excessivamente românticos do homem do século XIII.

Francisco foi um frei medieval, fundador de uma das grandes Ordens religiosas - os franciscanos. Alguns dirão ser impossível pensar Francisco sem os elementos religiosos que o produziram, mas creio que este seja algo possível. Ou melhor, re-interpretar sua biografia com o olhar atual pós-modernos. Vejamos.



O nome franciscano é tão-somente o nome popular do movimento por ele criado. O nome oficial é Ordem dos Frades Menores (OFM). Menores e Maiores eram termos correntes de Assis do século XII usados para retratar a marcante diferença social estabelecida entre os potestas - nobres e burgueses - e os plebeus e pobres que, como sabemos, eram a maioria. É nítido no ideário de Francisco as relações sociais medievais, de modo que se diz que Francisco viveu verdadeiramente seu tempo. Francisco via de modo incontesto os estratos sociais, os ricos com acesso a toda sorte de coisas e os pobres desvalidos e desprezados. Nada de novo, se considerarmos a sociedade industrializada.

Dizem os biógrafos que Francisco desejou, como Cristo, ter um gênero de vida itinerante e desvalido, como alguém que é pregado numa cruz, sem nada e nem ninguém. Ser pobre como um pobre, entre os pobres, como foi Jesus. Seu perfil psicológico foi decisivo nisso, e isso se torna visível em sua forma de paridade com Cristo. A menoridade, o não ter nada e ninguém, o ser ultrajado e abandonado e, ao mesmo tempo, estar submisso e sujeito a todos e a tudo, justamente por ser menor, se tornou um conceito central entre os franciscanos.

Francisco e os primeiros frades viveram esse conceito de forma estrita. Dirá o santo:

"Senhora Santa Pobreza, o Senhor te guarde por tua santa irmã, a Obediência." (Elogio das Virtudes, 1)

Essa forma de submissão e pobreza, entretanto, gerou infindáveis discussões entre os futuros frades, ainda quando o fundador estava vivo. Afirmavam que a pobreza não deveria ser aplicada com tanto rigor e que ela deveria ser apenas pessoal, mas não comunitária. Isto é, individualmente os frades não possuíam nada, mas possuíam coletivamente nos conventos. Essa é a perspectiva atual.

A desapropriação - o não ter nada, não ter apropriação de nada - pode ser compreendido também em ser caráter psicológico. O Dalai Lama dissertará sobre o tema em seu livro A Arte da Felicidade ao afirmar que a apropriação produz o efeito psicológico de assimilação à coisa que se deseja, como se aquilo a que se deseja fosse uma extensão de si. Assim, não se trata epenas de ter ou não um carro, ter ou não acesso às coisas, mas na relação que se estabelece entre o sujeito desejante e o objeto desejado, de modo que, ao se perder o que se deseja, o sujeito perde algo de si, porque o objeto é outro de si. A desapropriação franciscana pode ser entendido dessa forma, como um longo processo que dura a vida inteira de se distanciar das coisas para delas fazer bom uso. Pode-se ter um carro, mas se faz a pergunta se é necessário que seja de luxo e em que medida ele prejudica a vida diária de quem o possui. Quanto à pobreza, dirá Pai Francisco:

"E os que vinham abraçar este gênero de vida distribuíam aos pobres o que acaso possuíam. E eles se contentavam com uma só túnica remendada por dentro e por fora, com cíngulo e as calças." (Testamento, 16)

A pobreza não se torna penosa à Francisco. Ela não é um entrave à realização humana, mas um fator de construção da identidade. Da pobreza brota a minoridade e também a alegria. E o que é a alegria franciscana? A alegria consiste num contínuo sujeitar-se, uma mudança de mentalidade capaz de ver contentamento mesmo nas condições mais desafortunadas. Francisco faz do desalento sua força e da aceitação das adversidades um propício terreno que conduz à felicidade porque "se eu tiver tido paciência e permanecer impertubável, digo-te que aí está a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e a salvação da alma." (Opúsculos Ditados, 31)

A menoridade também possui caráter subversivo, quase como uma luta pacífica contra o status quo. A famosa cena de Francisco se despindo em praça pública e entregando suas vestes ao pai dizem algo sobre isso. Lembremos que Francisco era filho do comerciante Bernardone, conhecido por seus tecidos de luxo franceses e que aspirava que seu filho fosse um cavaleiro ou nobre. De fato, Francisco, em sua fase pré-conversão esteve entretido com essa busca pela glória, muito comum no imaginário popular medieval. Com o tempo, contudo, à medida em que seu amadurecimento ocorria, viu-se atraído por aquilo que se chama na atualidade de causas sociais. Talvez fosse hoje um assistente social. Mas mais do que isso. Ele não desejava manter apenas um ofício, mas fazer-se o próprio ofício; não apenas trabalhar in loco, mas fazer um modo de ser in loco. Seus escritos seguintes dirão algo sobre isso:

"Foi assim que o Senhor me concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. E enquanto me retirava deles, justamente o que antes me parecia amargo se me converteu em doçura da alma e do corpo. E depois disto demorei só bem pouco e abandonei o mundo." (Testamento, I: 1-3)

A figura do leproso era algo temível, repulsivo para o medievo - herança da antiguidade judaica, onde o pecado era representado pela lepra. Num momento em que não existiam medidas sanitárias de controle para a hanseníase, os doentes eram exilados socialmente e obrigados a caminhar com sinos que os fazia distinguir dos que não eram leprosos. Francisco rompe com a dicotomia ricos-pobres, maiores-menores, apropriados-desapropriados, e assume uma nova identidade existencial. Não se aproxima e convive com leprosos por um ofício profissional, impessoal, frio; mas os vê como um excluído, como um sofredor no mundo, como um outro de Cristo que se faz presente na dor, como um menor. A associação se torna existencial e afetiva.

A sociedade atual diluiu o imaginário simbólico do leproso... para criar outros similares. O que seria um leproso hoje? A famosa canção franciscana chamada Francisco e Clara o diz bem: 'É índio, operário, é negro, é latino; Jovem, mulher, lavrador e menor." Os menores do medievo não desapareceram, mas foram transfigurados em outras categorias sociais. Os menores não mais caminham pelos campos sendo explorados pelos burgueses ou são constrangidos a viver em leprosários no fora das cidades. Os menores atuais são os espoliados pelo sistema de produção neo-liberal, que lutam para sobreviver como os leprosos. São todos os que se associam em sindicatos em articulação com o patronato por direitos trabalhistas e que no último trimestre de 2016 ensodam os 11,8% de desempregados no Brasil, ou seja, um verdadeiro exército de 12 milhões de menores, segundo o IBGE.

Outro aspecto muito significativo da moral franciscana e que ocupa centralidade em sua espiritualidade - ou como opto por chamar, configurações existenciais! - é a noção de fraternidade. Dirá o santo:

"E depois que o Senhor me deu irmãos..." (Testamento, 4:14)

"Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol,
Que Clareia o dia
E com sua luz nos alumia."
(Cântigo do Irmão Sol, 3)

Francisco opta pela fraternidade, como muitas grandes Ordens de sua época, como os beneditinos ou dominicanos. Mas apenas entre os Menores ele assume centralidade. As relações sociais foram e ainda o são extremamente importantes e se articulam à noção de menoridade. Não é possível ser um menor sozinho. Faz-se necessário maior adentramento nas problemáticas existenciais da humanidade para, assim, entende-las como uma continuidade de si advinda de Deus. O irmão o é por Deus, com Deus. A fraternidade se estabelece num contínuo convívio, e nunca deve ser vista como algo pronto e acabado, mas como um processo, um perpétua construir de relações capazes de modular afetos pelos demais irmãos. E a afetividade minorítica se direciona a todas as coisas porquanto todas as coisas vêm de Deus.

Uma parcela significativa das esculturas de Francisco são reproduzidas com pombos e outros animais. É comum que em seus conventos os frades abençoem os animais de estimação todo dia 04 de outubro. Isso porque os animais e todos os elementos naturais são vistos sob o enfoque da fraternidade. Daí decorre, finalmente, o folclórico imaginário popular de irmão Sol, Irmã Lua, Irmão Vento, irmãs Cotovias, etc, de modo que a natureza e os homens, todos juntos, conflagram uma só coisa, a fraternidade universal, onde a paz se torna um paradigma mantenedor das relações.

Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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